segunda-feira, 31 de julho de 2017

Nove lições e um diálogo infinito

Se as possíveis definições acadêmicas de arte variam de acordo com o contexto cultural e o momento histórico, o trabalho artístico, por outro lado, pode ter um caráter fora da lógica e torna-se, muitas vezes, universal e atemporal.  Qual o segredo do artista capaz de capturar e encantar pessoas atravessando tempos? O psicanalista argentino J.-D. Nasio acredita que a obra de arte produz efeitos importantes: hipnotiza quem as contempla, ao mesmo tempo que suscita estado similar de paixão que levou o artista a concebê-la. Trata-se também de uma forma de comunicação e, assim, traz ao espectador a oportunidade de novas revelações. Por atingir cada um de forma singular, permite infinitas respostas diante de um mesmo estímulo.  Também pode despertar diferentes motivações e sentimentos para o mesmo observador. “A obra de arte adormece a nossa consciência e permite o despertar de nossos impulsos criadores”, escreve. Segundo o autor, a arte seria uma projeção imperiosa de um sentimento, de uma ideia ou de uma imagem que, uma vez exteriorizados, se cristaliza numa forma perceptível e sugestiva, isto é, numa forma que faz fantasiar e vibrar quem a capta.

Em respeito a essa espécie de transgressão de uma linguagem meramente conceitual, o autor de 9 lições sobre arte e psicanálise evita um texto explicativo ao  convidar o leitor a, previamente, pesquisar e apreciar  na internet as obras a serem comentadas. Como livre-pensador faz considerações, hipóteses analíticas, associando o conteúdo das produções a algumas experiências particulares na história de cada artista citado. É esta livre-associação que tece o livro.
Para fundamentá-lo, Nasio articula as diferentes manifestações artísticas e seus autores, recorrendo a um importante mecanismo de defesa – apresentado por Freud e desenvolvido também por Lacan –, capaz de transformar em produção criativa as dores e sofrimentos humanos: a sublimação. Trata-se de uma ação psíquica frutífera, à medida que parte de uma busca narcísica em direção a uma solução capaz de estimular efeitos psíquicos saudáveis frente às angústias pessoais.
O destino de uma pulsão, quando sublimada, não tem finalidade utilitária ou decorativa e traz um impacto de caráter inédito e intrigante. Por essa razão, a ligação direta entre sublimação e transmissão é inevitável. Basta o observador se deixar penetrar e ser fecundado pela força que emana da obra.
Logo de início, Nasio faz referência a Maria Callas. Para ilustrar as reflexões, traz à luz a infância turbulenta da cantora de voz intensa e contagiante, fala da relação da artista com a mãe e levanta a questão sobre a importância da música e da expressão como a busca de uma solução para suas marcas e angústias. Mais feliz como cantora do que como mulher, Callas costumava dizer: “Tudo que é necessário saber sobre mim está na música”. O mistério de sua voz não estava tanto em sua fonte, mas na emoção que atingia a todos.
Ao transcrever uma palestra proferida sobre o pintor suíço Felix Valloton no Grand Palais, o autor propõe um mergulho imaginário em seu inconsciente para buscar entender sua doença, fonte de sua paixão criadora. Observa nos trabalhos a presença da amargura como a força de seu talento. Como se condenado à solidão, pinta nas telas o que não consegue realizar na vida.
Ao falar de Francis Bacon, lembra seu encantamento pelo trabalho de Diego Velasquez, especialmente por Retrato do Papa Inocêncio X. Numa espécie de fixação obstinada pelo ídolo, Bacon buscava copiar apaixonadamente sua perfeição. E foi esta a dinâmica que pôde tê-lo conduzido a se tornar um dos pintores originais e perturbadores da era moderna.
Sobre a dança, Nasio traz observações feitas num espetáculo de ballet. Relaciona os sacrifícios disciplinares que sobrecarregam o bailarino e acabam por transformar seu corpo em expressão artística pura. Um sofrimento que condensa o gesto sublime de seus movimentos.
Também se refere a Picasso, concentrando-se especialmente no quadro A menina com a pomba e traz um caso clínico, propondo um paralelo entre a dor expressa no olhar triste da menina do quadro e a melancolia de uma paciente que conviveu com a tela em sua casa de infância.
A respeito do prazer de observar imagens eróticas, apresenta o mundo mental como a zona erógena primordial que permite prolongar na imaginação a imagem que nos excita. Com um texto acessível e reflexões independentes, Nasio traz a aproximação entre a arte e a psicanálise, num diálogo que pode ser infinito. A linguagem artística manifesta e exterioriza o universo subjetivo, ânsias e conflitos de forma singular, num percurso de sutilezas psíquicas para os quais a lógica racional parece sempre.
9 lições sobre arte e psicanálise. J.-D. Nasio. Zahar, 2017. 160 págs. R$ 44,90.
ERANE PALADINO é psicóloga e psicanalista, mestre em psicologia clínica, professora do Instituto Sedes Sapientiae.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição de julho de Mente e Cérebro, disponível em:
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