De início, Vidro pode ser resumido como o filme que une Corpo Fechado com Fragmentado, mas há muito mais por trás de tal ideia. A condução dessas três histórias interligadas faz mais sentido do que se tudo estivesse presente apenas num filme, como era o plano inicial do cineasta. Juntas, elas possuem uma coerência ainda mais surpreendente por mesclarem diferentes gêneros: drama, suspense e terror – além da inovação vista no terceiro capítulo: um thriller super-heroico que, se analisado atentamente, incorpora todas as categorias citadas. Temos o suspense que paira no olhar de Mr. Glass (Samuel L. Jackson), o drama contido nas preocupações de David Dunn (Bruce Willis), assim como o terror (agora também interno) de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy). Por unir os destaques dentro da construção dessa saga, é inegável afirmar que estamos diante do maior desafio da carreira de Shyamalan.
Passado semanas após os eventos de Fragmentado e 15 anos após Corpo Fechado, Vidrotem basicamente apenas um local que move a trama: o hospital psiquiátrico da Filadélfia onde o trio é internado. David e Kevin (junto de suas 24 personalidades) entram no local ao mesmo tempo, mas Glass está ali há mais de uma década. O maior foco de Shyamalan é mostrar detalhadamente a rotina dos protagonistas, não sem antes situar o espectador com a atmosfera fora do local – especialmente a rotina de David como o herói encapuzado, trabalhando em conjunto com o filho Joseph (Spencer Treat). Após a internação, boa parte de Vidro se concentra na execução das particularidades técnicas do diretor (como nos enquadramentos diferenciados) e na construção do suspense via diálogos com a doutora Ellie Staple (Sarah Paulson). A pesquisa da médica tem como objetivo provar que nenhum deles possui poder algum, seja físico ou mental; e cabe ao trio continuar acreditando em si ou ouvirem os fatos que lhe são apresentados com tanto afinco.
Consequentemente, a pesquisa de Staple ressoa também no espectador, que pode (ou não) duvidar dos feitos do trio na medida em que a personagem dá suas explicações. O ambiente tenso e desequilibrado começa a aparecer diante dessas dúvidas, mas o caminho até o clímax soa vagaroso. Enquanto a trama principal vai sendo costurada com a união gradativa de Glass, Kevin e David, Shyamalan sabe que o mais interessante é justamente a força do trio. McAvoy novamente rouba a cena com suas múltiplas atuações – muito por conta da direção, que lhe dá toda a liberdade e evita cortar as passagens de uma personalidade a outra, enquanto Willis e Jackson brilham com certo equilíbrio, ainda mais afetados pelo peso da ligação que possuem. Porém, sendo este o filme de Glass, sua presença é uma crescente, começando silenciosa e sobretudo no olhar. O personagem de Jackson atua como um roteirista que vai saindo das sombras para, enfim, trabalhar em sua grande e esperada obra.
Ao mesmo tempo que tem como questionamento a crença e a importância de possui-la ou não, Vidro representa a forma de Shyamalan integrar o universo heroico ao seu modo. Sem precisar se basear em roteiros de HQ's, ele alcança o topo de uma criação feita exclusivamente para o audiovisual de modo original, mantendo-se na própria essência e utilizando-a como impulso. Suas escolhas narrativas condizem com a proposta de humanizar o incomum e sair da curva de 'filmes de herói' – especialmente no clímax, que une diferentes tons e personagens (como Casey Cooke, Joseph e a mãe de Mr. Glass) a fim de fechar uma história ligada por fatalidades e atos grandiosos, ainda que limitados aos olhos da sociedade.
Dito tudo isso, a melhor parte deste filme ser um grande desafio é que o diretor não parece preso ao passado e nem ao peso do que concebeu. Ele se encontra bastante confortável ao inserir sua identidade em cada plano e cena, que são caprichadamente desiguais. Enquadramentos tortos, movimentos rápidos que vão de um personagem a outro, planos em primeira pessoa e também a câmera na mão podem parecer muitas escolhas de filmagem em um só longa, mas aqui são bem pensadas para "conversarem" com cada cena. A paleta de cores, que vai do roxo ao azul e do rosa ao amarelo, também ganha bastante destaque e serve como um breve aceno ao mundo dos quadrinhos.
Há certa ironia de Shyamalan quando ele ameaça ir por um caminho que visa o espetáculo e, no último segundo, opta por outro rumo menos óbvio. Ele tem a consciência de que, apesar de hoje estar livre para se encaixar no gênero dominado por produções da Marvel e da DC, a identidade que tanto investiu nos últimos anos ultrapassa máscaras e capas.
Vidro é o encontro de Shyamalan com ele mesmo da forma mais sincera e direta com o que estabelece em seus filmes: histórias de pessoas extraordinárias e comuns. Olhando para sua carreira como um todo, este é um filme que define a mente de quem está por trás das câmeras
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