Layon Lazaro
Taurus, do diretor russo Sorukov, convida o espectador ao martírio dos últimos dias de Vladimir Lenin.
Por Layon Lazaro – Fala! Usp
Considerando a história do cinema soviético, é fácil perceber que Taurus, do cineasta russo Alexandr Sorukov, se destaca dos predecessores pela sua coragem. É o primeiro filme a privar de qualquer prestígio e reverência a figura de Lenin, o último grande herói soviético, a tal ponto que, em certos momentos, chega a ridicularizá-lo.
O filme nos apresenta Vladimir Lenin débil e muito fragilizado, embora ainda munido de rompantes de poder e acessos de raiva. O ex-grande líder soviético aqui não é nem respeitado pelos seus camaradas: logo no início vemos Lenin entregue nu em uma cama, escoltado por um soldado enquanto tenta ler a um jornal. O soldado dá um tapa na mão de Lenin e lhe toma o jornal, quase como se estivesse lidando com uma criança.
Lenin revida pregando pequenas peças nos seus companheiros, mas nem isso é tão infantil quanto suas tentativas de cumprir atividades simples do cotidiano – vestir uma camisa, tomar banho, sentar-se para o jantar. Mas as brincadeiras tem fim pois a fragilidade é crescente e, ao final do filme, Lenin perde a capacidade de fala e seus movimentos ficam comprometidos de tal modo que ele precisa ser carregado e empurrado em uma cadeira de rodas.
É curioso como Lenin se esforça em negar a existência de Deus de forma constante, como se tivesse sempre que se convencer disso. E ele ainda o faz com mais veemência em cenários e paisagens sublimes, no campo ou nas florestas, como se a visão da beleza da criação o intimidasse a pensar no Divino e seus mistérios. O sonho de Lênin era “varrer o cristianismo da Terra”, e ele trabalhou para isso enquanto líder máximo soviético, oficializando o anticristianismo militante como prática nacional. Mas homem nenhum pode se interpor dessa forma entre Deus e a Humanidade sem ser assombrado pelos próprios demônios. Falam com Deus, mas se não há Deus, por que falam?
A iminência da morte também tem seus momentos de leveza. Há uma bonita cena em que Lênin, senil mas filósofo, em conversa com a esposa nos campos de grama alta, pergunta, meio sério, meio irônico, como será a vida após sua morte – se é que será alguma vida. A mulher, perdida em seus próprios pensamentos, mal ouvindo os resmungos do marido, responde que “tudo permanecerá como está”. A reação de Lênin é ambígua, equilibrada entre auto-piedade e a resiliência pacífica em face ao inevitável. Depois, ele prolonga os resmungos filosóficos, até que a esposa distraída reclama das meias rasgadas. A materialidade mesquinha da situação ali é demais para Lênin, que tenta fugir pela grama alta do campo mas desfalece e finalmente é carregado de volta ao carro pelo seu soldado, que é tão seu carcereiro quanto sua babá.
Todo o filme, no fim, é sobre isso: o terrível e patético calvário de um homem tentando escapar. Escapar de seu corpo, de seu quarto-jaula, da sua vida e, por fim, e o mais impossível de todos, escapar da própria morte. Em certos momentos, (incluindo uma conversa com Stalin), Lenin pede por veneno, querendo cometer suicídio. Mas por mais humilhante que tenha se tornado sua vida, e por mais que sua mente outrora brilhante se torne opaca, seu apelo não é sincero: é uma pose tomada precisamente para pôr a morte à distância. Enquanto a causa da morte puder ser localizada e identificada (no caso, suicídio), ela pode ser neutralizada ou pelo menos mantida à distância.
Após a visita de Stalin, a debilidade de Lenin avança com rapidez, mas seu último acesso de fúria é precedido por um momento de curiosa lucidez: após dissertar sobre Lafargue e Feuerbach, Lenin pergunta à sua corte por que estão cercados por tanto luxo e grandeza se a nação está morrendo de fome. Respondem-no que ele não deveria se ocupar com isso, já que tudo ali foi “expropriado” (roubado, na linguagem comunista). É demais para o velho chefe, que rompe em fúria destruindo a porcelana em sua mesa e só é contido por um grupo de soldados. As cenas seguintes estão entre as mais memoráveis do filme: Lenin, confrontado por sua mãe falecida, é convidado a se juntar a ela na morte. Mas ele recusa o convite, e é trazido “de volta” à vida, numa paródia grotesca de um renascimento, emergindo nu em uma banheira de água negra e pútrida, cercado por enfermeiras e soldados, que se dividem entre zombar e permanecer indiferentes à cena. O ritual se assemelha a um batizado cristão, mas em vez de preparo para uma vida nova, Lenin se prepara para a morte, e o rito é conduzido não por um pastor, mas pelos próprios filhos de sua revolução – ateus materialistas, em sua multidão anônima.
Apesar de todo seu calvário, é difícil sentir pena de Lenin. Sua sede por violência e maldade está impressa em todo o filme. Quando acorda pela manhã, pede a sua esposa que leia para ele sobre diferentes formas de punição, em detalhes sórdidos como o momento em que a carne se depreende do corpo depois de muito espancamento, ou quando o casal passa uma tarde de piquenique no campo e ela lê para o marido, em uma voz meiga e confortável, passagens sobre torturas e assassinatos. É um filme difícil de assistir, com tantos gemidos e murmúrios, e Lenin arrastando seu corpo inútil acima e abaixo, caindo a cada tentativa de se levantar, ficando de quatro no chão.
Sua morte é um alívio: os cinco minutos finais do filme são silenciosos, Lenin sentado em sua cadeira de rodas no jardim escutando o barulho do gado, de pássaros e trovões, esperando a morte, como se a busca pelo poder fosse de fato inútil e suas conquistas uma efemeridade. No fim das contas, os gemidos do grande ditador em nada se diferenciam dos mugidos das vacas.
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