À época do lançamento de Corpo Fechado, M. Night Shyamalan foi aconselhado a não divulgar seu filme como uma história de super-herói. Hoje, o desfecho de sua trilogia conversa bastante com o atual cenário cinematográfico, repleto de diversos poderes e... heróis. Curiosamente, o pontapé inicial do universo particular que criou há quase duas décadas pode servir como um respiro em meio a tantos filmes baseados em quadrinhos. Shyamalan conseguiu uma proeza admirável por vias tortas: se ele retornou ao terror em Fragmentado, a principal façanha de Vidro é o diretor conseguir conversar com o público que consome tramas que visam o extraordinário – ao mesmo tempo em que subverte seu próprio modo de contar histórias por se concentrar nos conflitos internos dos protagonistas. Ainda assim, ele não foge da mesma abordagem vista no filme de 2000, que é frágil, trivial e, sobretudo, humana.
De início, Vidro pode ser resumido como o filme que une Corpo Fechado com Fragmentado, mas há muito mais por trás de tal ideia. A condução dessas três histórias interligadas faz mais sentido do que se tudo estivesse presente apenas num filme, como era o plano inicial do cineasta. Juntas, elas possuem uma coerência ainda mais surpreendente por mesclarem diferentes gêneros: drama, suspense e terror – além da inovação vista no terceiro capítulo: um thriller super-heroico que, se analisado atentamente, incorpora todas as categorias citadas. Temos o suspense que paira no olhar de Mr. Glass (Samuel L. Jackson), o drama contido nas preocupações de David Dunn (Bruce Willis), assim como o terror (agora também interno) de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy). Por unir os destaques dentro da construção dessa saga, é inegável afirmar que estamos diante do maior desafio da carreira de Shyamalan.
Passado semanas após os eventos de Fragmentado e 15 anos após Corpo Fechado, Vidrotem basicamente apenas um local que move a trama: o hospital psiquiátrico da Filadélfia onde o trio é internado. David e Kevin (junto de suas 24 personalidades) entram no local ao mesmo tempo, mas Glass está ali há mais de uma década. O maior foco de Shyamalan é mostrar detalhadamente a rotina dos protagonistas, não sem antes situar o espectador com a atmosfera fora do local – especialmente a rotina de David como o herói encapuzado, trabalhando em conjunto com o filho Joseph (Spencer Treat). Após a internação, boa parte de Vidro se concentra na execução das particularidades técnicas do diretor (como nos enquadramentos diferenciados) e na construção do suspense via diálogos com a doutora Ellie Staple (Sarah Paulson). A pesquisa da médica tem como objetivo provar que nenhum deles possui poder algum, seja físico ou mental; e cabe ao trio continuar acreditando em si ou ouvirem os fatos que lhe são apresentados com tanto afinco.
Consequentemente, a pesquisa de Staple ressoa também no espectador, que pode (ou não) duvidar dos feitos do trio na medida em que a personagem dá suas explicações. O ambiente tenso e desequilibrado começa a aparecer diante dessas dúvidas, mas o caminho até o clímax soa vagaroso. Enquanto a trama principal vai sendo costurada com a união gradativa de Glass, Kevin e David, Shyamalan sabe que o mais interessante é justamente a força do trio. McAvoy novamente rouba a cena com suas múltiplas atuações – muito por conta da direção, que lhe dá toda a liberdade e evita cortar as passagens de uma personalidade a outra, enquanto Willis e Jackson brilham com certo equilíbrio, ainda mais afetados pelo peso da ligação que possuem. Porém, sendo este o filme de Glass, sua presença é uma crescente, começando silenciosa e sobretudo no olhar. O personagem de Jackson atua como um roteirista que vai saindo das sombras para, enfim, trabalhar em sua grande e esperada obra.
Ao mesmo tempo que tem como questionamento a crença e a importância de possui-la ou não, Vidro representa a forma de Shyamalan integrar o universo heroico ao seu modo. Sem precisar se basear em roteiros de HQ's, ele alcança o topo de uma criação feita exclusivamente para o audiovisual de modo original, mantendo-se na própria essência e utilizando-a como impulso. Suas escolhas narrativas condizem com a proposta de humanizar o incomum e sair da curva de 'filmes de herói' – especialmente no clímax, que une diferentes tons e personagens (como Casey Cooke, Joseph e a mãe de Mr. Glass) a fim de fechar uma história ligada por fatalidades e atos grandiosos, ainda que limitados aos olhos da sociedade.
Dito tudo isso, a melhor parte deste filme ser um grande desafio é que o diretor não parece preso ao passado e nem ao peso do que concebeu. Ele se encontra bastante confortável ao inserir sua identidade em cada plano e cena, que são caprichadamente desiguais. Enquadramentos tortos, movimentos rápidos que vão de um personagem a outro, planos em primeira pessoa e também a câmera na mão podem parecer muitas escolhas de filmagem em um só longa, mas aqui são bem pensadas para "conversarem" com cada cena. A paleta de cores, que vai do roxo ao azul e do rosa ao amarelo, também ganha bastante destaque e serve como um breve aceno ao mundo dos quadrinhos.
Há certa ironia de Shyamalan quando ele ameaça ir por um caminho que visa o espetáculo e, no último segundo, opta por outro rumo menos óbvio. Ele tem a consciência de que, apesar de hoje estar livre para se encaixar no gênero dominado por produções da Marvel e da DC, a identidade que tanto investiu nos últimos anos ultrapassa máscaras e capas.
Vidro é o encontro de Shyamalan com ele mesmo da forma mais sincera e direta com o que estabelece em seus filmes: histórias de pessoas extraordinárias e comuns. Olhando para sua carreira como um todo, este é um filme que define a mente de quem está por trás das câmeras
O início da trama pode criar uma falsa impressão sobre Buoyancy. Quando Chakra (Sarm Heng) abandona a família pouco amorosa e embarca numa jornada em busca de trabalho precário na fronteira com a Tailândia, sabemos que o futuro não parece muito promissor. O embarque num navio pesqueiro, contra a sua vontade, logo introduz o contexto do tráfico de pessoas e o trabalho escravo moderno. Entre patrões perversos e imigrantes sofredores, embarcamos rumo a um conto sombrio visando alertar o espectador sobre situações humanitárias degradantes.
Aos poucos, felizmente, a narrativa adota rumos mais complexos. Primeiro, por personalizar a massa de trabalhadores através de suas reações distintas ao controle dos donos dos barcos. Enquanto alguns planejam a fuga e outros alimentam um rancor crescente, Chakra busca agradar os sequestradores na intenção de receber um tratamento mais brando. Qual seria a melhor resposta a um comportamento tirânico? A resistência, a conformidade ou o exílio? Além disso, o roteiro revela aspectos menos frágeis do que o garoto parecia ter. Confrontado a situações extremas, ele adota atitudes violentas, muito mais incisivas do que a de seus colegas.
Até quando nós, enquanto público, devemos apoiá-lo? Buoyancy guarda certas semelhanças com outro estudo moral, um tanto mais perverso: Dogville, de Lars von Trier, fábula sobre uma mulher boa provocada até o limite de sua aceitação. Dentro da sala de cinema, o público aplaudia a vingança de Grace (Nicole Kidman), comemorava as mortes encomendadas por ela. Nossa adesão ao protagonista justifica o apoio à vingança? Qual seria o limite para a identificação com o espectador? Afinal, é fácil torcer pelo garoto explorado no início, mas quando toma a situação em mãos, nossa condescendência em relação à barbárie passa a ser questionada pela narrativa do diretor Rodd Rathjen.
Enquanto testa os personagens e os espectadores em seus princípios morais, o filme faz o possível para trazer dinamismo a uma história de ritmo linear, alternando dias e noites dentro da embarcação, quando os trabalhadores executam basicamente as mesmas tarefas: a pesca de pequenos peixes destinados ao uso na indústria de alimentos para animais domésticos. O cineasta sabe transformar o drama de sobrevivência num suspense, à medida que os constantes abusos despertam o desejo de retaliação. O filme consegue sugerir, através dos olhares do protagonista e do espírito de competição entre os próprios trabalhadores, que a situação será superada apenas através da tragédia.
Atenção, possíveis spoilers a seguir!
O resultado se revela uma curiosa fábula imoral, do tipo que deseja homenagear as vítimas de trabalho forçado no Camboja sem vê-las como heróis nem pobres coitadas, apenas sobreviventes de uma guerra adentrada ao acaso. A conclusão da história é de uma amargura rara neste tipo de projeto: logo após para acenar ao final feliz tradicional – estabilidade, reencontro com pessoas próximas – o filme sugere que talvez a vida em terra não seja muito melhor do calvário em alto mar. Chakra foge do ambiente familiar como foge do barco – assim como some do enquadramento, e do nosso olhar. A câmera não o acompanha, talvez por não saber aonde vai. O futuro não é nada promissor ao sobrevivente de apenas 14 anos de idade.
Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.
A série esta longe de ser prolixa ao contrário , sua narrativa estritamente descritiva e cheia de detalhes em seus longos capítulos torna a série algo que se assemelha a ler um bom livro de suspense. As atrizes são magníficas e fiquei pasmo em como vão construindo seus papéis de forma a ter semelhanças que chegou a me deixar na dúvida se elas não eram mesmo irmãs. As crianças fazem um espetáculo a parte : interpretações cheias de peso e sentimentalidade aliadas a uma expressão facial digna dos filmes de terror. O cenário , apesar de carregado de informações é belo e tenso, principalmente nas cenas mais longas onde o espectador chega a reconhecer-se em um quadro, como acontece em alguns momentos em filmes modernos como "a bruxa". Vale a pena aguardar o último capítulo!
“Você é tão maravilhosa que faz um homem preferir o inferno ao invés do céu, só para ficar com você.”
Contém spoilers.
A morte é um dos maiores desafios mundanos que o homem há de enfrentar. Faz ela, no entanto, parte de uma trajetória vital, mensurada sob dependência de momentos muitas vezes felizes e também muitas vezes tristes. Seria este, porém, o fim de uma jornada ou o começo de uma nova? Talvez uma passagem, necessária para que se compreenda e aceite o que de mau lhe aconteceu, o que de bom lhe aconteceu, o mal que se fez, o bem que se fez. Independente do significado a ela atribuída, morrer definitivamente não é fácil nem para os que acabam por perecer nem para aqueles que, vivos, encontram apenas uma saudade amarga daqueles que se foram. Baseado no livro de Richard Matheson, Amor Além da Vida tem como objetivo trazer uma reflexão sobre os diversos sentimentos envoltos da morte – e, primordialmente, de como o amor pode ter um papel fundamental para que se renasça dela.
A trama gira em torno de Chris Nielsen (Robin Williams) e sua esposa Annie (Annabella Sciorra), que juntos constituem uma família ideal, dois filhos e muito amor para dar. Da desgraça que vem do acaso, um acidente tira precocemente a vida das crianças e o casal desaba – cada um da sua maneira particular. Após quatro anos, quando o casal parece estar levando uma nova, consideravelmente feliz, vida, Chris também acaba falecendo, em decorrência de outro acidente pavoroso. Para o Paraíso sua alma é levada, enquanto Annie é injustamente obrigada a lidar com o desespero da solidão.
Em um primeiríssimo plano, é factual que roteirizar sobre a morte caracteriza-se como um grande desafio, pois a criação de regras específicas desse novo mundo – universo ou dimensão – tende a criar furos. Igualmente, se feita sob um viés mais religioso, a adaptação deve ser cuidadosamente manejada para não ofender nenhum credo. De qualquer forma, o roteirista Ronald Bass buscou um caminho mais simples, mas não menos acertado. Ao surgirem novos problemas na história, regras são informadas e o filme prossegue. No final das contas, contrariando o que se espera, não há um intuito do roteiro em mostrar como é a vida após a morte; não há nenhum cunho religioso ligado estritamente a essa obra. Amor Além da Vida é, acima de tudo, uma história de amor tocante e subversiva, contrária às regras não só da sociedade, como do próprio além.
Sendo assim, o filme já começa abordando o relacionamento entre Chris e Annie, com flashbacksesporádicos contribuindo para um entendimento e desenvolvimento dos personagens, fundamentando essencialmente na relação entre eles. Nesse passo, porém, o longa acaba, precipitadamente, avançando demais na história, o que não deixa o público sentir inteiramente o que aconteceu e o que está acontecendo no enredo. A morte dos filhos, por exemplo, é atropelada pelo falecimento de Chris. O que se observa é que a obra, pela sua própria natureza, pinceladora de uma importância substancial às crianças, implica uma necessidade de aproximação do espectador com as dores sentidas na morte delas, algo que é feito de maneira não tão eficaz na adaptação.
Apenas com esses flashbacks esporádicos, citados anteriormente, é que se é permitido pelo roteiro revelar uma verdadeira construção do relacionamento entre pais e filhos. Mesmo assim, apenas o personagem de Robin Williams recebe a devida atenção na sua relação com as crianças. A dor de Annie é exaltada em uma dessas sequências no passado – de maneira muito competente por sinal – mas seria mais interessante também mostrar situações triviais que fortalecessem um vínculo materno. Tal atitude de Bass seria imprescindível para uma fortificação de sentimentos, no intuito de se revelar o amor de Chris tanto em sua trajetória no além, quanto na sua resistência inabalável, ainda no plano terreno, perante àquela que é a maior dor de todas. Sem isso, a montagem de David Brenner também fica estranha, pois, sem saber para onde quer ir, o filme perde foco, ligeiramente bagunçado.
Além disso, o roteiro define-se como extremamente previsível, a começar pelo inesperado encontro de Chris com sua filha Marie (Jessica Brooks Grant) no Paraíso. A cena é bonita e emocionante, digna de algumas lágrimas, mas o mesmo twist é utilizado em duas outras situações; a última soando óbvia demais. O final, embora estupendo, também fracassa, ao se apressar em contar uma conclusão que poderia ter sido, tranquilamente, estendida por alguns minutos a mais. É nessa problemática que outro ponto fraco do roteiro se revela: o desperdício do experiente Max von Sydow. O ator busca exprimir a sabedoria filosófica e o senso de segurança que o personagem pede, mas os diálogos, aliados com decisões narrativas questionáveis, enfraquecem seu trabalho. Por outro lado, Albert (Cuba Gooding Jr.) revela uma jovialidade genuína em seus trejeitos, a qual vai de encontro com uma revelação surpreendente da obra.
O personagem de Cuba, porém, não é desenvolvido afundo, visto que estamos verdadeiramente hipnotizados com o destino que será provido à personagem de Annabella Sciorra. A atriz começa como uma mulher alegre, romântica, apaixonante, até que a morte surge pela primeira vez em sua vida. A atriz capta de forma assombrosa tanto o desespero de uma mãe sem os filhos (mostrado tardiamente por meio dos flashbacks) – quanto o de uma viúva. A ela não resta mais ninguém.
Em contraponto, o protagonista, Robin Williams carrega um peso muito grande detrás de sorrisos enormes e expressões singelas, as quais, ainda assim, são tão sinceras quantas as mais extravagantes performances do ator. Chris não entrou em desespero após a morte dos filhos, ele segurou a maior dor imaginável do mundo e guardou-a até a sua morte. É ironicamente trágico que o ator, mais de uma década depois do filme, viria a cometer suicídio. Um assunto delicado, mas que com certeza vem à tona se o espectador tiver tido contato com essa informação. Junte isso a um filme que lida com problemas relacionados a aceitação de fatos da vida, apatia coberta por uma falsa felicidade, desespero e primordialmente, suicídio, que a perda do ator, infelizmente, dará mais peso a essa bela história.
Para completar a análise, a direção de Vincent Ward encontra um caminho ideal para levar vistosidade estética a questões tão particulares. Fora os efeitos especiais, que são surpreendentemente bons, a fotografia é um espetáculo à parte, responsabilidade do português Eduardo Serra. O contraste visual entre o ambiente que acerca Chris após sua morte, e o que acerca Annie após a morte do marido é bastante perceptível. Enquanto que com Annie temos um mundo cinzento, combinado com os traços de melancolia e tristeza envoltos da personagem, no Paraíso, a paleta de cores é cintilante, tendendo substancialmente às cores mais vibrantes. Nesse meio, destaca-se a sequência inicial de Chris no Além, o qual, após ser recebido por Albert, vê o mundo a sua volta ser moldado pela aquarela, refletida das pinturas de sua esposa. É tudo muito lindo, desde as folhas das árvores, passando pela água pastosa, até chegar à grama que desmancha-se, virando tinta. A direção de arte desse filme é fantástica.
Amor Além da Vida é uma obra com bastante potencial dramático, visto que lida com pontuações que estudam a existência humana sob um viés espiritual interessantíssimo. Aliado a interpretações honestas e um estudo sobre a morte completamente funcional, o filme peca, contudo, no roteiro, consideravelmente preguiçoso, e na inconsistência do foco narrativo. No entanto, esta é, embora os deméritos, uma obra que tem algo a dizer, e que diz, mesmo que não tenha um exímio trabalho de indução ao questionamento intrapessoal do espectador. Independente de todo o pano de fundo envolvido nas temáticas abordadas, não há nenhuma prova de amor tão grande quanto a pura existência da jornada que Chris propõe a adentrar em busca de sua eterna amada. Em paráfrase a Friedrich Nietzsche, aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal.
Amor Além da Vida (What Dreams May Come) — EUA/ Nova Zelândia, 1998 Direção: Vincent Ward Roteiro: Ronald Bass (baseado em romance de Richard Matheson) Elenco: Robin Williams, Cuba Gooding Jr., Annabella Sciorra, Max von Sydow, Jessica Brooks Grant, Josh Paddock Duração: 113 min.
Realizador de curtas como “Os Sobreviventes”, “A Felicidade Chega aos 40” e “Netuno”, Daniel Nolasco debuta na direção de documentário em longa-metragem partindo de um registro particular, acompanhando três irmãos (que são seus primos de segundo grau) durante um breve período em férias pela região dos Paulistas para reencontrar os seus pais. Mas há um comentário que se tece a partir do fato de todos os três viverem na urbana Catalão.
Trata-se do fim que se aproxima de um ambiente rural, sustando por uma velha geração que se apequena e abandonada pelas mais jovens que vislumbram um futuro além do trabalho braçal e da dificuldade de acesso aos bens da cidade grande. Porém, outros fenômenos que contribuem para um fim que inevitavelmente se aproxima são os avanços da monocultura agrícola e da exploração dos recursos hídricos.
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A questão em “Paulistas” é que Nolasco nunca estabelece um vínculo do espectador com Samuel, Vinícius e Rafael. Tanto que afora a imagem emblemática na qual cada um é introduzido, portanto rifles em mãos com uma bala disparada contra um velho televisor, nada se comunica aqui, revelando uma tendência cada vez mais habitual no documentário brasileiro de acreditar que a mera observação nada intrusiva basta para se construir um filme.
Bem melhor é o resultado obtido por Marcus Vinicius Vasconcelos em seu “Quando Os Dias Eram Eternos”. Neste curta experimental produzido em rotoscópio tem em comum com “Paulistas” – a Sessão Vitrine Petrobrás o exibirá antes do documentário – o não dito e esse encontro com gerações, com o diferencial de que aqui é obtido com mais sucesso aquela sensação de que se está falando com afeto sobre conexões familiares e a dor do fim.
Os personagens originalmente criados pelo escritor americano Philip K. Dick não sonham somente com ovelhas elétricas, como também devaneiam sobre unicórnios. Adaptado no ano de 1982, pelo britânico Ridley Scott (Alien: Covenant), o romance sci-fi e de fundamentações filosóficas percorreu um longo calvário (cujos fatores são tantos que opto por não dar espaço aqui) para chegar às telas. Reconhecido de forma tardia, porém desempenhando papel seminal, tanto aos seus gêneros explorados como à própria arte, Blade Runner, também de forma tardia, recebe sua sequência. Mesmo que bem polido e finalizado (após sete versões, concebidas por estúdio e diretor), as inquietações e gama de interpretações e novas possibilidades eram (e ainda são) tantas que uma sequência poderia ser reconfortante a novas explorações e público.
Em Blade Runner 2049, ambientado trinta anos após os acontecimentos do primeiro filme, a humanidade recupera, em partes, a possibilidade de sobrevivência por meio do ecossistema já escasso do sucumbido planeta Terra. As novas explorações interplanetárias – em grande parte graças ao sucessor da Tyrell Corp., Niander Wallace (Jared Leto) – permitem que a parte rica da população viva o nunca mostrado luxo extraterrestre, enquanto a anos-luz a humanidade e os recentemente integrados replicantes agonizam em meio à sordidez moral e substancial do planeta. Idealizados por Wallace como mão de obra barata, os androides coabitam nas mais diversas esferas e postos da sociedade terrestre, sendo um deles o blade runnerK (Ryan Gosling), competente serviçal da Polícia e frequentemente subjugado pelos humanos (numa interessante transformação de medo ao asco desde o primeiro filme, diga-se).
A forma tomada por suas temáticas é canalizada na maior parte do tempo pela figura de K. O androide (numa revelação tão espontânea e sem tempo para rodeios, logo ao início de projeção) e também caçador de seus semelhantes, ruma a descobertas que concernem tanto a si como ao futuro da engenharia robótica – e no que tange, de forma crucial, a própria existência da humanidade. Em oposição às suas escolhas, mas em busca análoga ao segredo da trama, Wallace e Luv (Sylvia Hoeks) desempenham as pré-determinadas funções antagônicas ocupadas em tantos outros exemplares; vilão com vasto conhecimento científico e pretensões megalomaníacas, acompanhado de sua capanga (aqui, replicante) perita em artes-marciais.
O ideário proposto por Hampton Fancher e David Webb Peoples no longa de 1982, por sua vez adaptado do romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, do supracitado Philip K. Dick, aqui, encontra uma visão expansionista, de forma natural. Os temas eternos e de complexidade metafísica discutidos originalmente ganham frescor nas mãos de (novamente) Hampton Fancher e Michael Green, seu novo colaborador, e pela direção do canadense Denis Villeneuve (A Chegada). O período compreendido desde o lançamento do longa original até esta sequência, é grande e composta de diversas incursões no gênero e com propostas similares, ampliando a temática e readequando seus conceitos. A busca pela longevidade cede espaço à assimilação da própria realidade; a desconstrução do estado de ser é flexionada pela descoberta e ânsia de existir, integrar. E da mesma forma como fora tratado anteriormente, Blade Runner 2049 sintetiza tais conceitos e discussões e os transpõem por meio das ações e embates de seus personagens – humanos e, principalmente, replicantes.
A trama detetivesca, apropriada nos acontecimentos de 2019, é reincorporada por ações que remetem a eventos corriqueiros no subgênero da espionagem. Se Rick Deckard (Harrison Ford) dava forma a um Sam Spade ou Philip Marlowe futurista, pelas atividades desempenhadas em âmbito pessoal e profissional, K encarna, de forma premeditada pelo dado contexto, um agente mais dinâmico e propenso a lidar racionalmente com os eventos que o acometem – mas sem nunca esvaziar e tirar o peso de seus dilemas enfrentados, quase um Jason Bourne. Talvez, a maior representação disto seja na forma encontrada por Denis Villeneuve de embalar o filme em seu ritmo diligente, tomado por sequências de ação das mais diversas formas. O combate físico, aéreo e armado, com pouco espaço no filme de 1982, ganha um bom uso em extensas cenas durante pontos precisos da narrativa, intermediado pelos saltos ocasionais da trama.
A escalada de conceitos e o desenrolar de seus nós dramáticos ocorre de forma orgânica e comedida durante seus dois primeiros atos, acompanhando a tônica melancólica e pessimista do filme de Scott. Os momentos dados para introspecção do personagem de Gosling, contemplando o belo arco dramático com sua inteligência artificial companheira, Joi (Ana de Armas), em formato de holograma móvel/portátil (que em muito remete Her), ao justo embate sobre suas ações ante determinadas circunstâncias, retoma a reflexão moral imposta sobre os personagens do longa original. K assume a forma de presa e predador; é um misto entre as fatalidades encontradas por Roy Batty (Rutger Hauer) e o próprio Deckard, desenvoltos pela expectativa do futuro e a percepção do efêmero, respectivamente.
Sobre tais caminhos, a retidão de Gosling como o replicante/blade runner é composta em sua maior parte pela apatia (interessantemente, uma característica comum entre ator e personagem, se observada sua função desempenhada), mas bem alocada dado os eventos narrativos. A inicial inexpressão evolui proporcionalmente à trama, preenchida com circunstanciais e calculados arroubos. Juntamente à tal progressão, a jornada de K acaba por desvencilhar-se do drama convencional de autodescoberta e toma forma heroica, cintilando fagulhas de uma inevitável rebelião.
O protagonista do primeiro Blade Runner, e agora, coadjuvante em partes, muito há de se especular. O personagem de Rick Deckard, melhor elemento ligante entre os períodos da saga, oferece um complemento interessante ao novo protagonista, uma vez que as jornadas de cada um atingem pontos de intersecção em suas coincidências e diferenças. A posição neutra de Villeneuve também infere sobre a natureza de Deckard – pauta para debates desde o lançamento em 1982 e praticamente findada desde a versão final de Scott, de 2007. Somado também ao próprio vácuo de trinta anos entre os dois longas, o futuro incerto do personagem pode render debates tão interessantes quanto estes.
Partindo de suas reviravoltas e descobertas, a progressão narrativa estagna em seu terceiro ato. Os conceitos desenvolvidos até então – e a própria frieza do olhar impessoal a seus acontecimentos – são substituídos por guinadas dramáticas e sentimentais (com direito ao clássico tema Tears in Rain, do compositor do longa original Vangelis e apropriado pela nova dupla da obra). Ao passo que delineia a nova postura assumida por K e demais personagens – além de criar ganchos narrativos para possíveis continuações –, a forma posta ao texto torna-se incongruente aos pedaços narrativos anteriores. O fio de esperança apresentado desde o início da trama é quase asfixiado por tamanha exposição (principalmente em diálogos e subterfúgios danosos, como flashbacks e voice-over), mas recuperado pelo despertar de K e o final de Deckard.
Uma pena esta precoce interrupção estancar também a possibilidade do desenvolvimento do vilão principal, Wallace. Assumindo trejeitos quase cartunescos (e, obviamente, batidos), com melodia na voz e bruteza em suas ações, só nos é ofertado parte das pretensões do personagem, sem qualquer background dramático; opaco, pode-se dizer. O mesmo ocorre em diferente grau com Luv: em suas primeiras apresentações, há indícios de uma relação complexa entre criatura e seu criador, expressos por nuances em sua composição facial. Entretanto, novamente, a transposição ao terceiro ato mina tais capacidades e ainda entrega uma série de linhas de diálogo enfadonha.
Semelhante ao primeiro filme, Blade Runner 2049 intermedia sua sucessão de eventos pela ótica de seus personagens polarizados. Atrelados à mesma busca, a narrativa permite a observação de diferentes abordagens e procedimentos quanto à investigação por parte de K/Joshi (Robin Wright, tenente da corporação) e Luv/Wallace – além dos divergentes conceitos introspectivos de cada. Mesmo com a probabilidade de gerar um caos ao que fora estabelecido pelos humanos, o filme tece desde o início da procura um fiapo de esperança aos envolvidos, com seu tom ora flertando com um otimismo não presente no filme de 1982, sendo assim, compreensível a tentativa de transição entre seus atos (e até mesmo refletida pela fotografia asséptica do projeto).
O esmero técnico da produção perpassa os constituintes do clima autêntico e opressivo de Blade Runner. Na bela contraposição entre o sintético e natural, a Los Angeles de 2049 ainda é tomada por holofotes, outdoors digitais, placas e letreiros em néon, sem uma única aparição de feixes de luz natural e ainda abafados pelo tórrido vapor e a incessante chuva – alternando com neve acinzentada. A união das equipes de direção de arte e design de produção recriam o mesmo clima captado há mais de trinta anos – e, hoje, registrado pelo cinematógrafo Roger Deakins, possivelmente o maior expoente do ramo. Utilizando as mesmas cores industriais do primeiro filme, a alternância entre supersaturação do azul e as inexpressivas imagens filtradas num cinza apático, estilizando os novos cenários explorados (e demarcados por sábios elementos próprios); tal construção caracteriza também seus personagens de forma eficaz em certas circunstâncias. A intensidade da luz emanada no rosto de K, a praticamente fusão em tons lavados de Deckard em sua corroída habitação, a harmonia de cores tomada pela neblina que cerca a fazenda de Sapper Morton (Dave Bautista), todos estes são joguetes técnicos que enriquecem a obra e também experiência do espectador, contribuindo ao desenrolar e manifestação de sua narrativa e personagens.
A trilha sonora de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch evoca, não somente pela própria forma melódica e sintética, mas também temática e pontual, os acordes e temas conduzidos por Vangelis no primeiro filme. Acompanhando a trama em seu desenvolvimento gradual, a utilização da sonoridade da trilha mescla-se ao próprio design e edição de som do filme, em seus longos e dissonantes acordes (característica primal de Zimmer), transformando-se praticamente num elemento diegético e realçando o furor exposto na megalópole futurista.
Blade Runner 2049 e seus personagens percorrem os mesmos caminhos traçados no filme oitentista – no entanto, em eventualidades e direção opostas. Expandindo a fértil mitologia do filme original – acarretando também no aprofundamento e desenvolvimento de seus dilemas morais e metafísicos –, o novo longa faz jus ao primeiro filme em suas diversas camadas exploradas, desde seus momentos performáticos até divagações existenciais e tomada de consciência. Seus pecadilhos (reviravoltas pouco impactantes e desnecessárias, trechos de diálogos deslocados, arcos iniciados e não concluídos, por conta da provável sequência) não comprometem as amarras do filme, e nem a experiência do espectador, conciliando de forma eficaz os fãs saudosistas ao público fidelizado ao gênero – o que os excessivos 163 minutos podem provocar um certo desconforto. Equilibrando-se de forma ideal entre suas ocasionais homenagens e desenvolvimentos temáticos, é um espécime exemplar de bom aproveitamento como blockbuster de gênero e como exercício de reflexão em suas eventuais divagações.
Nota do CD:
[Rating:4/5]
Sinopse do filme: Trinta anos após os acontecimentos do primeiro filme, a humanidade está novamente ameaçada, e desta vez o perigo pode ser ainda maior. Isso porque o novato oficial K (Ryan Gosling), desenterrou um terrível segredo com potencial de mergulhar a sociedade ao completo caos. A descoberta acaba levando-o a uma busca frenética por Rick Deckard (Harrison Ford), desaparecido há 30 anos.
Trailer do Filme:
Ficha Técnica: Elenco: Ana de Armas, Carla Juri, Dave Bautista, David Dastmalchian, Harrison Ford, Hiam Abbass, Jared Leto, Lennie James, Mackenzie Davis, Robin Wright, Ryan Gosling, Sylvia Hoeks, Wood Harris Direção: Dennis Villeneuve Roteiro: Hampton Fancher e Michael Green Produção: Andrew A. Kosove, Broderick Johnson, Bud Yorkin, Ridley Scott Fotografia: Roger Deakins Trilha Sonora: Benjamin Wallfisch, Hans Zimmer Estúdio: Warner Bros. Montador: Joe Walker Distriubuidor: Sony Pictures
Bright chegou ao Brasil com uma forte divulgação, encabeçada por geniais vídeos divulgados pela Netflix (que, aliás, tem investido forte e acertadamente em marketing junto ao público brasileiro) e pela presença de Will Smith, Joel Edgerton e David Ayer na Comic Con Experience, onde o filme foi exibido em pré-estreia.
Salva toda possível expectativa sobre Bright, trata-se de um típico filme de ação policial com uma boa mescla de fantasia, uma mistura interessante com a sempre garantida boa atuação de Will Smith e que também resgata o diretor David Ayer.
Em Bright, existe uma sociedade onde convivem criaturas das mais diversas espécies, até mesmo fadas. Os Orcs são marginalizados, vivendo nos guetos; os elfos fazem parte da alta elite e menosprezam humanos e Orcs; e bem, humanos, neste caso, continuam sendo humanos, e além das diferenças entre si, também menosprezam os Orcs.
Neste contexto, Daryl Ward (Smith) é um policial que tem como parceiro o Orc Nick Jakoby (Edgerton), único de sua raça a integrar as forças policiais. Jakoby vive sob a desconfiança de seu parceiro, dos outros policiais e é também menosprezado pelos semelhantes de sua raça. Jakoby orgulha-se de ser um policial e busca o reconhecimento de Ward, a quem vê como amigo e inspiração.
Os Orcs, por sua vez, exaltam um passado onde a magia era venerada, quando derrotaram o Senhor das Trevas – um poderoso elfo que visava eliminar as outras raças – e, por isso, não veem a aliança de sua raça a outras com bons olhos. No tempo atual, a magia é visto como algo não mais existente, e tudo o que cerca estas histórias é vista pela maioria apenas como lendas.
A trama apresenta seu real objetivo quando a dupla se depara com a elfa Tikka (Lucy Fry), detentora de uma varinha mágica, um artefato poderosíssimo que só pode ser manejado por um Bright, seres únicos e raros capazes de controlar magia. Ward e Jakoby, de repente, se veem envoltos em uma guerra entre gangues, elfos e polícia em torno do objeto mágico que pode mudar a realidade como eles conhecem.
Embora apresente uma série de pontas relacionadas ao seu pano de fundo mágico, como a própria origem dos Brights e mesmo o lado dos elfos, Bright não os explora com tanta clareza, deixando às vezes a impressão de que tais elementos não possuem muita relevância (e alguns não possuem mesmo). Os vilões também apresentam pouca profundidade e não chegam a cativar.
Por outro lado, o desenvolvimento dos protagonistas é ótimo, ficando evidente a boa dinâmica entre Smith e Edgerton, que parecem bastante à vontade em seus papéis – em alguns momentos, parece que estamos vendo uma nova versão de Bad Boys, com uma roupagem moderna e fantástica que acrescenta bastante. E, do mesmo modo, o longa rende cenas de ação de tirar o fôlego.
A mescla de elementos de fantasia com ação policial e um contexto moderno é bem interessante e mostra a competência de Ayer e da Netflix em criar estórias originais, com uma trilha sonora excelente e que conduz os momentos chaves do filme em ótimo tom (inclusive, recomendamos ouvir, está no Spotify).
Outro ponto positivo e, talvez, o mais importante de Bright: por baixo do teor fantasia-contemporânea sob o qual a estória é desenvolvida, há uma clara mensagem sobre racismo, xenofobia e segregação, evidenciada pelas raças apresentadas na trama. Os comportamentos notados especialmente em relação ao policial Jakoby evidenciam o preconceito eminente e a necessidade de falar sobre o tema, atingindo uma ferida que nunca foi tão atual quanto agora.
Desconsiderando qualquer pretensão de ser um épico do momento ou de criar um novo gênero de filmes, Bright é um ótimo longa, divertido e entusiasmante. Um clássico filme de ação pipoca, com uma abordagem nova, bons diálogos e cenas de impacto.