Mesmo com a ciência de um Brasil polarizado politicamente, é provável que Kleber Mendonça Filho não tenha previsto as penalidades que sofreria na decisão conjunta com a sua equipe de comparecer ao photo op em Cannes de “Aquarius” com sulfites A4 ostentando frases como “Um golpe ocorreu no Brasil” e “Brasil não é mais uma democracia”. Enquanto uma grande parcela demonstrou apoio o protesto, a oposição se enfureceu, exigindo boicote ao filme.
Quatro meses após o episódio no mais prestigiado festival de cinema do mundo, “Aquarius” chega ao público ainda envolto a controvérsias. Há duas que se destacam. A primeira diz respeito à classificação indicativa de 18 anos estabelecida pelo Ministério da Justiça, geralmente conferida a filmes com conteúdo violento ou sexual predominante e explícito.
A outra controvérsia se refere ao temor de Kleber em não ver “Aquarius” como o filme selecionado para representar o Brasil no Oscar, uma vez que um dos membros da comissão, o crítico Marcos Petrucelli, sempre se posicionou nas redes sociais contra a ação protagonizada pelo cineasta em Cannes. A novela prossegue, já contando com o desligamento de dois integrantes do grupo escalado pelo Ministério da Cultura e a desistência de colegas como Anna Muylaert (“Mãe Só Há Uma“), Gabriel Mascaro (“Boi Neon”) e Aly Muritiba (“Para Minha Amada Morta“) em inscrever os seus filmes para a vaga.
Muitos espectadores irão rememorar cada um dos acontecimentos descritos ao assistir “Aquarius”, já predisposto a apreciar ou não a realização. Vem aí um adendo. Kleber Mendonça Filho faz um cinema de autor, sintonizado com questões políticas e sociais que influenciam a sua visão de mundo. Por outro lado, isso não significa que “Aquarius” seja pautado nas inquietações que externou em Cannes. Assim, é importante apreciá-lo como uma manifestação artística que independe de todos esses fatores externos.
O tema central de “Aquarius” vem a ser uma extensão de uma discussão já fomentada em “O Som ao Redor” e em alguns de seus curtas: a apropriação de uma terra. Aposentada de 65 anos, viúva e mãe de três filhos com as vidas já feitas, Clara (Sonia Braga) é pressionada por uma construtora a abandonar o Edifício Aquarius, sendo a sua única inquilina. Mesmo que a oferta do jovem e ambicioso arquiteto Diego (Humberto Carrão) soe tentadora, Clara diz que jamais desistirá do seu apartamento.
Ao passo em que Diego bola provocações para que Clara ceda (como o transporte suspeito de colchões para os números desocupados e o convite para um grupo de amigos praticar uma orgia no andar superior – cena de meros segundos que de modo algum justifica a proibição de menores), vamos compreendendo o que o ambiente representa para ela. Não se trata apenas de um endereço para preservar as memórias de um tempo que não volta mais. É também a redoma de uma mulher aplacada pela solidão e as marcas de um câncer superado, que se consola com os inúmeros LPs que a rondam.
Há 20 anos sem protagonizar um longa-metragem brasileiro (o último pôster que estampou foi o de “Tieta do Agreste”, de Carlos Diegues), Sonia Braga é o coração que pulsa “Aquarius”. A veterana atriz se entrega de corpo e alma à Clara, um papel que não se exime de também compreender a vivacidade que há na velhice e que ainda a presenteia com instantes de fortes explosões dramáticas, especialmente quando a sua relação com o personagem de Humberto Carrão passa a ter as máscaras da cordialidade caídas.
Além da contribuição inestimável de Sonia Braga, Clara expõe outras dimensões quando problematizada pelo texto, tendo em seu encalço uma figura de grande influência tentando persuadi-la ao mesmo tempo em que os abismos sociais são deflagrados em uma Recife com territórios literalmente demarcados. Trata-se do investimento em um discurso que dá ao todo um excesso que poderia ser eliminado, mas que não nos faz desviar do principal atrativo de “Aquarius”: os valores de gerações que se atraem ou se repelem a partir da defesa de seus interesses particulares.
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