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Quando se fala de Stanley Kubrick, automaticamente concebemos a imagem de um realizador único, com capacidade de subversão e originalidade difíceis de serem igualadas por qualquer outra pessoa em seu meio de expressão: o cinema. O diretor de Nova Iorque produziu pouco em seus quase cinquenta anos de atividade. Foram treze filmes, dentre os quais se destacam grandes obras-primas como Glória Feita de SangueDr. Fantástico e 2001: Uma Odisseia no Espaço. Porém, até os grandes mestres começaram em algum lugar.
Em 1953, aos 25 anos de idade, Kubrick produziu, fotografou, editou e dirigiu seu primeiro filme: Medo e Desejo. Naquela época, ele trabalhava como fotógrafo para a revista Look e tinha poucos recursos para fazer um filme. Conseguiu, então, a ajuda de um tio, que lhe deu o dinheiro necessário para os gastos com elenco e produção. O roteiro foi escrito por Howard Sackler (que viria a ganhar um prêmio Pulitzer anos mais tarde), amigo de Kubrick da época de ensino médio.
“Há guerra nessa floresta. Não uma guerra que foi ou será feita, mas qualquer guerra”.
É com essa frase que Medo e Desejo inicia, enquanto vemos uma tomada de uma enorme e densa floresta. O filme apresenta quatro soldados de um país não nomeado, lutando em um país não nomeado contra inimigos de outro país não nomeado. O tenente Corby, o truculento Mac, o tranquilo homem de família Fletcher e o jovem e inexperiente Sidney. Os quatro estão presos atrás das linhas inimigas, sem suprimentos e com pouca munição, após a queda de seu avião. O plano deles é construir uma jangada e atravessar o território inimigo na água.
A partir desse momento, os homens terão de enfrentar os medos e desejos comuns entre soldados e combatentes de guerra. O tenente tem medo de falhar como líder e colocar em risco a vida de seus comandados. Mac é frustrado com sua vida e teme morrer como uma pessoa qualquer, que não causou impacto algum no mundo. Fletcher teme por sua vida constantemente e anseia pelo reencontro com sua família. Porém, o melhor personagem do filme é o jovem soldado Sidney.
Em um determinado momento, eles invadem uma casa onde alguns inimigos estavam comendo, e matam todos. A cena é construída pelo corte rápido entre os quadros, alternando entre os inimigos sendo mortos e os soldados os esfaqueando. Após o massacre, vem o silêncio. Os rostos dos sobreviventes agora são alternados com os corpos dos assassinados. Em destaque, vemos a expressão do jovem Sidney, perplexo com o que ocorrera.
Após o episódio, os protagonistas são avistados por uma mulher nativa, que não fala o idioma deles. Com medo da possibilidade dela procurar os comandantes inimigos, eles prendem-na numa árvore e deixam o jovem para tomar conta dela, enquanto os outros vão procurar a jangada. Kubrick insere flashbacks do massacre enquanto Sidney vai lentamente sucumbindo a um estado total de loucura. Ele desamarra a mulher com o intuito de estuprá-la, ao mesmo tempo em que tenta dizer que ele não é como os outros, que ele é um bom rapaz.
Com as mãos livres, ela consegue fugir. Porém, o jovem, completamente desestabilizado, mata a mulher com um tiro nas costas. Mac volta ao local após ouvir o barulho do disparo, e encontra seu companheiro, agora louco, dando explicações infundadas, dizendo frases sem sentido e, enfim, fugindo. Pode-se dizer com segurança que o trabalho de Paul Mazursky, o soldado Sidney, é a primeira grande interpretação dos filmes de Kubrick. Seu retrato do homem sendo consumido pelo horror da guerra é uma das grandes qualidades do filme.
Em seguida, Mac diz a Corby e Fletcher que tem um plano para eles escaparem: invadir a casa de um general inimigo e fugir em seu avião. Ele se dispôs a distrair e matar os inimigos enquanto os outros dois fogem, pois quer realizar o desejo de fazer algo importante em sua vida, de ser um herói. Enquanto Mac ataca os soldados que protegem a casa, os outros dois vão pelos fundos para alcançar o avião. Antes disso, eles olham pela janela e veem o general inimigo almoçando com um de seus soldados, e partem para confrontá-los.
O curioso, contudo, é o fato do general inimigo ser interpretado por Kenneth Harp, que também faz o papel de Corby, e o soldado inimigo ser feito por Stephen Coit, que também interpreta Fletcher. Usando como cenário uma guerra fictícia, e usando os mesmos atores para os dois lados do conflito, Kubrick faz uma forte crítica à guerra, e em como nela não há mocinhos e vilões. O destino dos soldados é mostrado em uma forte cena final, realçada pela excelente trilha sonora de Gerald Fried.
Medo e Desejo teve uma boa recepção quando foi lançado, o que possibilitou a Kubrick largar seu emprego na Look para se dedicar inteiramente ao cinema. Logicamente, o filme não pode ser comparado às grande obras da maturidade artística do diretor, mas foi uma ótima estreia, que já dava pistas de assuntos e técnicas recorrentes em sua obra.
O tema da guerra em si, que viria a ser reproduzido em Glória Feita de Sangue e Nascido Para Matar (que também mostra um jovem soldado ficando louco com a guerra); o tom pacifista e crítico em relação aos conflitos; o uso de um ator para mais de um personagem, como em Dr. Fantástico; a fotografia expressionista (que, em Medo e Desejo, tem muita influência de Kurosawa, em especial de Rashomon); e sua extrema habilidade em transmitir mensagens e significados com suas imagens, como poucos cineastas na história conseguiram.
A experiência que Medo e Desejo proporciona, além do fato de ser um bom filme, é a de assistir um gênio em sua primeira empreitada, ainda engatinhando em uma arte na qual, décadas depois, seria reconhecido como um grande expoente.

Texto enviado pelo leitor Luiz Eduardo Luz.
7.1BOM
Considerando as condições de orçamento e produção, Kubrick realizou um ótimo retrato dos horrores da guerra e de seus resultados na mente de quatro soldados, em um curto, mas emocionante filme de estreia.