Ingmar Bergman é um diretor sueco que sempre nos presenteia com filmes excepcionais. Carregados de dor, reflexão e uma capacidade nos fazer sufocar diante da tela, a intensidade de seus filmes é algo incapaz de ser colocado em palavras.
Sonata de Outono é um dos melhores trabalhos do genial diretor. A trama do filme é sobre a relação conflituosa entre Eva (Liv Ullmann) e Charlotte (Ingrid Bergman), mãe e filha que sempre tiveram uma relação fria e distante, e que após sete anos sem se verem, se reencontram e, nesse momento, todos os ressentimentos que estavam até então reprimidos são finalmente expurgados. Tudo é retratado em diálogos tão brilhantemente construídos que cortam na alma.
Charlotte é uma pianista de sucesso, que para conseguir alcançar tal objetivo sempre esteve ausente da vida familiar tanto como mãe quanto como esposa. Altiva e de olhar frio, a personagem de Ingrid Bergman representa uma mulher sem habilidades maternas que deposita na filha a responsabilidade pela expectativa do amor que esta esperava tanto receber. Já a personagem de Liv Ulmann é uma mulher tímida, de gestos infantis, e com seu olhar melancólico demonstra o quanto foi profundamente marcada pela ausência da mãe.
Sonata de Outono, como o próprio nome já diz, possui uma relação direta com a música, sua construção é correspondente a uma composição musical. Bergman, mais do que contar uma história, escreve uma música. A Sonata possui um primeiro movimento allegro, mostrando as cenas da chegada de Charlotte, o encontro desta com sua outra filha Helena, e os preparativos para o jantar; um segundo movimento de tempo mais lento mostra a cena de mãe e filha ao piano, interpretando o Prelúdio nº 2 de Chopin; e, por fim, um movimento de ritmo mais intenso é marcado pela discussão de Charlotte e Eva durante a madrugada, quando todas as mágoas guardadas por anos vêm à tona.
A cena em que Eva e Charlotte interpretam o Prelúdio de Chopin é, sem dúvida, uma das mais belas cenas do cinema. Primeiro Eva toca, enquanto Charlotte a escuta, depois as posições se invertem, mas a mesma música soa, e mãe e filha se relacionam do mesmo modo. É um diálogo mudo entre uma mãe indiferente e uma filha com medo. Charlotte olha para Eva com um misto de decepção e pena diante da falta de técnica com que a filha toca. E então ensina para Eva como se deve tocar: “Há dor mas sem parecer. Depois um breve alívio. Mas ele some de repente, e a dor continua a mesma”, e ao dedilhar no piano com toda a sua maestria, Eva a observa com amargura, constatando sua aparente derrota em mais uma batalha emocional.
“Será que a infelicidade da filha é o triunfo da mãe? Mãe, será que a minha tristeza é a sua satisfação secreta?”, diz Eva, a filha com uma dor irremediável que se iniciou na infância e a acompanhou por toda a vida. Em contrapartida, diz Charlotte: “Eu não queria ser sua mãe. Eu queria que você soubesse que sou tão indefesa quanto você”, em uma tentativa de mostrar que ela também é mais um ser humano, que falha e está tão perdida quanto todos nós. Charlotte é uma mulher incapaz de deixar transparecer o que realmente sente, por toda a sua vida fingiu uma alegria que não sentia, e só foi capaz de oferecer aos que estavam ao seu redor um falso amor, e foi em Eva que esse falso amor causou mais danos.
O conflito de Charlotte e Eva não é apenas uma história de desencontro entre mãe e filha, tema tão comum, trata-se de uma questão muito mais ampla, questão esta que é base para quase todos os filmes de Bergman, o fato de sermos todos analfabetos emocionais, uma vez que ignoramos nossas próprias emoções, as mascaramos, nos escondemos, e por esse motivo não sabemos nos relacionar com os outros, chegando, por vezes, a só conseguir nos relacionar por meio de rituais de humilhação, como o que Charlotte impõe à Eva. “Será assim com todo mundo? Ou será que alguns têm mais talento para viver que outros? Ou será que alguns jamais vivem, mas apenas existem?” Esta é uma das tantas reflexões que o filme nos deixa, mesmo depois de já tendo, há muito tempo, terminado.
Este é um filme sobre amor, sobre ódio, sobre medo, culpa e perdão, ou a impossibilidade deste. É um filme para se ver e rever. Com uma fotografia e direção de arte primorosas, atuações magníficas e diálogos de tirar o folêgo, Sonata de Outono é o cinema na sua forma mais pura. Ingmar Bergman prova mais uma vez o porquê de ser conhecido como o maior desbravador da alma humana.
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