quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A Pele que Habito


Coloque-se na sua pele! Algumas notas para quem viu o último Almodóvar
por Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira
(Profa. de Literatura Portuguesa da UFF)
A primeira imagem é a do dorso desnudo da mulher que fascina o vingador. Ali está um corpo transformado pela arte de um cirurgião plástico, interpretado por Antônio Bandeiras, no último filme de Almodóvar, A pele que habito. Aos poucos, por meio de flashbacks, o espectador reconhece o estilo inconfundível desse Diretor espanhol que sabe tratar com profundidade questões de amor e morte, sexualidade e poder. Aqui se observa um feroz e oblíquo libelo contra a intolerância frente a opções não-heterossexuais; oblíquo, porque não se dá a ver de modo direto e sim de forma especular como na tópica carnavalesca do mundo às avessas; feroz, porque, à sua revelia, este corpo foi alterado com uma violência que o espectador custa a reconhecer. Pelo rompimento da linearidade narrativa, voltamos ao passado recente para saber que, por acaso, o dono do corpo esteve a ponto de estuprar a filha do médico, tornando-se por isso a vítima do psicopático pai que o caça na estrada e o mantém preso como um animal na masmorra de sua luxuosa clínica onde realiza afamadas, ousadas e controvertidas experiências científicas.
A Pele que Habito - Novo filme de Pedro Almodóvar
A Pele que Habito - Novo filme de Pedro Almodóvar
A ferocidade paterna é compreensível embora o estupro não se tenha concretizado em vista da reação histérica da moça que, àquela altura, estava sob forte tratamento psiquiátrico. Por sua vez o presumido estuprador havia ingerido alguma droga, mas não o suficiente para perder a cabeça, o que lhe permite afastar-se da cena com prudência depois de rearranjar delicadamente as roupas da moça. Torna-se claro que sua opção heterossexual não está em causa, pois gosta de mulheres, trabalha para elas e com elas – sua mãe e uma funcionária lésbica(?) – divide uma loja de roupas femininas. No entanto o zeloso pai da donzela interpreta mal alguns sinais deixados pela moça no caminho – um casaco caído, uns sapatos abandonados – e acaba por encontrá-la desacordada no bosque, ao pé da árvore, mas inteiramente composta. Ao dobrar-se sobre a filha, que abre os olhos, acontece nova cena histérica, agora contra o pai que a menina supõe ser o estuprador, o que agrava fatalmente o seu estado psíquico daí em diante.
Que melhor desforra do que submeter o violentador ao mesmo tipo de violência experimentada pela sua filha? Desse modo o Dr. Ledgard prepara lentamente o prato frio da vingança na pele do jovem sequestrado. Graças a procedimentos cirúrgicos bem sucedidos, eticamente contestados pelos colegas médicos, a vítima toma a forma de uma linda e doce criatura dotada de todos os atributos femininos, em especial uma vagina artificial cuja destinação é clara: o vingador prepara o canal para a vingança. No entanto, a criatura acaba por ganhar a admiração e a confiança do seu criador (o velho tema de Pigmaleão), fazendo-nos esquecer sob aquela pele “feminina” habita um homem que sofre. Este é um esquecimento provocado pela genialidade de Almodóvar que traz à tona uma pequena verdade invisível: a violência de se ter um corpo em desacordo com a alma. Para escapar da opressão, Vicente / Vera (dupla onomástica do personagem) disfarça o seu dissabor e seduz o carrasco. Depois de muitas peripécias para se libertar, busca nas duas mulheres o refúgio e o apoio de que precisará daí para frente.
No jogo especular de gêneros que cruza sexualidades, a obra convoca um espectador ideal, espécie de “leitor ideal”na terminologia de Humberto Eco: o macho heterossexual incapaz de compreender a irreversível situação de se possuir uma alma feminina num corpo grosso e peludo, tal como a que vive o próprio Diretor, homossexual assumido. Vivendo de forma inversa a mesma dissonância – uma alma masculina num corpo feminino – , Vicente é o personagem com o qual o espectador homofóbico é chamado a se identificar, a se comover e, quem sabe?, entender e reverter o preconceito por meio da experiência de se colocar na sua pele.
Em suma, o filme é um libelo contra dois tipos de violência: a que é praticada pelos médicos prepotentes, donos dos corpos, na suposição de que sabem o que é melhor para os pacientes; e a que é dirigida por este mesmo tipo de gente contra homossexuais cujos corpos são vistos como imperfeitos por não combinarem com suas almas. De tudo isso deduz-se a postulação da soberania do desejo como forma de ultrapassar os violentos desacordos entre corpo X espírito ou pele X identidade sexual.
Recado dado, recado entendido. Na pele que (bem) habita, caberia ao Diretor levantar alguma estatueta de Melhor Filme da temporada. Simplesmente genial!

Veja o Trailer do Filme A Pele Que Habito



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