por Ronaldo D'Arcadia
Spielberg e Lewis fazem de "Lincoln" um discurso poderoso sobre igualdade e liderança.
Com a estreia de "Lincoln" nos cinemas brasileiros, muito se falou a respeito da sobriedade surpreendente da direção de Steven Spielberg, algo quepropositalmente inevitavelmente desmerece boa parte de sua carreira. É certo dizer que nem todo trabalho de Spielberg reluz, e esta é uma questão de erros e acertos, nada mais. O Spielberg que dirigiu "Lincoln" continua o mesmo que dirigiu "Jurassic Park - O Parque dos Dinossauros", ou "E.T. - O Extraterrestre", filmes que fizeram sucesso (e muito dinheiro) por suas qualidades, e não apenas por falar de temas escapistas ou tidos como irrelevantes.
Assim como fez em "Império do Sol", "Munique" ou no dramático "A Lista de Schindler", em "Lincoln", o americano optou por realizar uma obra madura, para audiências igualmente maduras. O roteiro de Tony Kushner - que se baseia parcialmente no livro de Doris Kearns Goodwin "Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln", lançado em 2006 -, apesar de não se preocupar com o didatismo, se foca em retratar, com riqueza de detalhes, todos os entreatos políticos que alicerçaram a 13ª Emenda à constituição americana, que aboliu a escravidão no país para todo o sempre.
O texto nos revela que naquele período de Guerra Civil, devido a intrínseca dualidade dos termos paz e escravidão, uma tênue linha foi traçada, que barrava de maneira poderosa os intuitos do Presidente em resolver o assunto de uma vez por todas. Se houvesse paz, não haveria motivos para a abolição, e esta por sua vez, para acontecer, deveria ser atestada apenas como um argumento legal e não humano, algo moralmente repudiado pelos abolicionistas extremistas republicanos.
Devido a uma constituição engessada por dogmas já vistos como arcaicos, e conflitos partidários vorazes - internos e externos -, o presidente Lincoln, tido como um dos mais honestos e importantes homens da história, teve de corromper seu governo com compras de votos e outros artífices para alcançar aquilo que acreditava ser um bem maior... e que no final provou-se um. Paralelamente, Spielberg e Kushner fazem questão de investigar - de forma não tão contundente - os bastidores da família presidencial, os dilemas do filho Robert (Joseph Gordon-Levitt) e a personalidade fortíssima e destemperada da esposa Mary Todd Lincoln (Sally Field). Argumentos que ajudam a fundamentar a imagem do homem por trás da lenda.
E no centro de tudo isso temos Daniel Day-Lewis com um trabalho que ganhou ares míticos. Definitivamente é difícil encontrar resquícios do ator por trás de seus personagens. Ele tem essa incrível habilidade de, ao invés de desaparecer, se tornar aquilo que interpreta - algo que beira certa loucura na verdade. Sua preparação é marcada por um processo rigoroso, que exige uma entrega total - por exemplo: no longa "Meu Pé Esquerdo", em que vive o artista deficiente Christy Brown, Lewis fez questão de andar apenas em cadeira de rodas e ser alimentado pela equipe de produção, já no papel do boxeador Danny Flynn, no filme "O Lutador", o intérprete quebrou o nariz e arrebentou com as costas, e para "O Último dos Moicanos" aprendeu a caçar e arrancar a pele de animais.
Em Lincoln, essa profusão interpretativa não foi menos intensa, sendo sua transformação, interna e externa, algo impressionante - seu trabalho vocal foi imprescindível, assim como a caracterização da postura esguia do presidente. Spielberg também possui sua "manias" quando o assunto é não perder o foco. Na produção do filme, foi criada uma espécie de cápsula do tempo em que os atores viviam como seus personagens. Os britânicos do elenco deveriam manter o sotaque americano em período integral, para assim não atrapalhar a personificação de Lewis, que também é inglês, e que, durante as filmagens, não deixou de ser Lincoln por nenhum segundo.
E muito além desta atuação, temos a perfeita edificação da persona de Lincoln. Com sua voz sempre calma e carismática, de eloquência natural impressionante, o presidente fazia da palavra sua ferramenta primordial, um dom natural que lhe tornaria o eterno ícone político que hoje é admirado com fervor. As infindáveis anedotas contadas, hora em tom de piada, hora com a mais pura seriedade, demonstravam sua inteligência e principalmente humildade como governante, sempre achando o exemplo perfeito de conduta a ser seguida.
Pelo calibre da produção, vemos um extenso e grandioso elenco, que vai desde atores experientes (David Strathairn, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, etc.), também talentos desconhecidos (David Costabile) ou novatos (Adam Driver, do seriado "Girls") - a maioria deles encontra o equilíbrio certo para seus personagens. Podemos citar como um curioso destaque o núcleo que oferece o humor da fita, composto pelo sumido (e excelente) James Spader, John Hawkes e Tim Blake.
A parte técnica de "Lincoln" foge dos elementos tradicionais utilizados por Spielberg, em particular sua forma de construir cenas. Ele escolheu um andamento mais centrado, sem rebuscar a narrativa ou se desviar do tema discutido. No entanto, ele trabalha muito bem a iluminação "natural" dos ambientes - obrigatoriamente tomados por certa penumbra -, imprimindo aí algumas de suas marcas. Em certos momentos, em meio a escuridão, um foco de luz ilumina suavemente o presidente, dando-lhe destaque, como em uma pintura clássica de outrora, emoldurando assim emblemáticas imagens do líder.
A trilha sonora de John Willians, com melodias de andamento militar, são menos evidenciadas devido a intenção do diretor de manter a seriedade e não valorizar demais a dramaticidade. Na verdade, "Lincoln" é basicamente um thriller político, que passeia pelo drama de maneira irrisória - uma opção narrativa oportuna, mediante a quantidade de informações ofertadas.
Em resumo: "Lincoln" retrata honestamente o árduo processo burocrático por trás do fim da escravidão nos Estados Unidos, e consequentemente o fim de uma guerra ignorante entre compatriotas. Sem perder tempo endeusando em demasia o presidente, Spilberg resolve deixar que os atos e palavras do homem exemplifiquem sua personalidade, reforçando então os valores apregoados por ele, que foram o primeiro passo fundamental rumo ao fim da banalização do preconceito racial.
Lincoln foi um herói, daqueles que não existem mais. Sua vida e legado, registrados enfaticamente por meio de discursos inspiradores e conquistas grandiosas, pertence hoje a todas as eras que vieram e que ainda virão. Sua voz ecoa na história.
Lincoln: EUA/ 2012/ 105 min/ Direção: Steven Spielberg/ Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, John Hawkes, Jackie Earle Haley, Bruce McGill, Tim Blake Nelson, Joseph Cross, JAred Harris, Lee Place, Michael Stuhlbarg, David Costabile, Jeremy Strong, Adam Driver
Com a estreia de "Lincoln" nos cinemas brasileiros, muito se falou a respeito da sobriedade surpreendente da direção de Steven Spielberg, algo que
Assim como fez em "Império do Sol", "Munique" ou no dramático "A Lista de Schindler", em "Lincoln", o americano optou por realizar uma obra madura, para audiências igualmente maduras. O roteiro de Tony Kushner - que se baseia parcialmente no livro de Doris Kearns Goodwin "Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln", lançado em 2006 -, apesar de não se preocupar com o didatismo, se foca em retratar, com riqueza de detalhes, todos os entreatos políticos que alicerçaram a 13ª Emenda à constituição americana, que aboliu a escravidão no país para todo o sempre.
O texto nos revela que naquele período de Guerra Civil, devido a intrínseca dualidade dos termos paz e escravidão, uma tênue linha foi traçada, que barrava de maneira poderosa os intuitos do Presidente em resolver o assunto de uma vez por todas. Se houvesse paz, não haveria motivos para a abolição, e esta por sua vez, para acontecer, deveria ser atestada apenas como um argumento legal e não humano, algo moralmente repudiado pelos abolicionistas extremistas republicanos.
Devido a uma constituição engessada por dogmas já vistos como arcaicos, e conflitos partidários vorazes - internos e externos -, o presidente Lincoln, tido como um dos mais honestos e importantes homens da história, teve de corromper seu governo com compras de votos e outros artífices para alcançar aquilo que acreditava ser um bem maior... e que no final provou-se um. Paralelamente, Spielberg e Kushner fazem questão de investigar - de forma não tão contundente - os bastidores da família presidencial, os dilemas do filho Robert (Joseph Gordon-Levitt) e a personalidade fortíssima e destemperada da esposa Mary Todd Lincoln (Sally Field). Argumentos que ajudam a fundamentar a imagem do homem por trás da lenda.
E no centro de tudo isso temos Daniel Day-Lewis com um trabalho que ganhou ares míticos. Definitivamente é difícil encontrar resquícios do ator por trás de seus personagens. Ele tem essa incrível habilidade de, ao invés de desaparecer, se tornar aquilo que interpreta - algo que beira certa loucura na verdade. Sua preparação é marcada por um processo rigoroso, que exige uma entrega total - por exemplo: no longa "Meu Pé Esquerdo", em que vive o artista deficiente Christy Brown, Lewis fez questão de andar apenas em cadeira de rodas e ser alimentado pela equipe de produção, já no papel do boxeador Danny Flynn, no filme "O Lutador", o intérprete quebrou o nariz e arrebentou com as costas, e para "O Último dos Moicanos" aprendeu a caçar e arrancar a pele de animais.
Em Lincoln, essa profusão interpretativa não foi menos intensa, sendo sua transformação, interna e externa, algo impressionante - seu trabalho vocal foi imprescindível, assim como a caracterização da postura esguia do presidente. Spielberg também possui sua "manias" quando o assunto é não perder o foco. Na produção do filme, foi criada uma espécie de cápsula do tempo em que os atores viviam como seus personagens. Os britânicos do elenco deveriam manter o sotaque americano em período integral, para assim não atrapalhar a personificação de Lewis, que também é inglês, e que, durante as filmagens, não deixou de ser Lincoln por nenhum segundo.
E muito além desta atuação, temos a perfeita edificação da persona de Lincoln. Com sua voz sempre calma e carismática, de eloquência natural impressionante, o presidente fazia da palavra sua ferramenta primordial, um dom natural que lhe tornaria o eterno ícone político que hoje é admirado com fervor. As infindáveis anedotas contadas, hora em tom de piada, hora com a mais pura seriedade, demonstravam sua inteligência e principalmente humildade como governante, sempre achando o exemplo perfeito de conduta a ser seguida.
Pelo calibre da produção, vemos um extenso e grandioso elenco, que vai desde atores experientes (David Strathairn, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, etc.), também talentos desconhecidos (David Costabile) ou novatos (Adam Driver, do seriado "Girls") - a maioria deles encontra o equilíbrio certo para seus personagens. Podemos citar como um curioso destaque o núcleo que oferece o humor da fita, composto pelo sumido (e excelente) James Spader, John Hawkes e Tim Blake.
A parte técnica de "Lincoln" foge dos elementos tradicionais utilizados por Spielberg, em particular sua forma de construir cenas. Ele escolheu um andamento mais centrado, sem rebuscar a narrativa ou se desviar do tema discutido. No entanto, ele trabalha muito bem a iluminação "natural" dos ambientes - obrigatoriamente tomados por certa penumbra -, imprimindo aí algumas de suas marcas. Em certos momentos, em meio a escuridão, um foco de luz ilumina suavemente o presidente, dando-lhe destaque, como em uma pintura clássica de outrora, emoldurando assim emblemáticas imagens do líder.
A trilha sonora de John Willians, com melodias de andamento militar, são menos evidenciadas devido a intenção do diretor de manter a seriedade e não valorizar demais a dramaticidade. Na verdade, "Lincoln" é basicamente um thriller político, que passeia pelo drama de maneira irrisória - uma opção narrativa oportuna, mediante a quantidade de informações ofertadas.
Em resumo: "Lincoln" retrata honestamente o árduo processo burocrático por trás do fim da escravidão nos Estados Unidos, e consequentemente o fim de uma guerra ignorante entre compatriotas. Sem perder tempo endeusando em demasia o presidente, Spilberg resolve deixar que os atos e palavras do homem exemplifiquem sua personalidade, reforçando então os valores apregoados por ele, que foram o primeiro passo fundamental rumo ao fim da banalização do preconceito racial.
Lincoln foi um herói, daqueles que não existem mais. Sua vida e legado, registrados enfaticamente por meio de discursos inspiradores e conquistas grandiosas, pertence hoje a todas as eras que vieram e que ainda virão. Sua voz ecoa na história.
Lincoln: EUA/ 2012/ 105 min/ Direção: Steven Spielberg/ Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, John Hawkes, Jackie Earle Haley, Bruce McGill, Tim Blake Nelson, Joseph Cross, JAred Harris, Lee Place, Michael Stuhlbarg, David Costabile, Jeremy Strong, Adam Driver
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