por Ronaldo D'Arcadia
O cinema do austríaco Michael Haneke sempre investigou momentos de transição abruptos, optando unicamente por uma ótica realista e perturbadora. Foi assim com o assassinato espontâneo em Benny's Video, a quebra repentina da tranquilidade em Caché, ou a visita inesperada dos irmãos Paul e Peter emViolência Gratuita (citando apenas alguns poucos exemplos).
Mesmo explorando variados temas humanísticos em suas obras, ele quase sempre tem como foco aquela fração de segundo em que tudo se transforma, que faz da realidade de seus personagens algo que não mais funciona, dentro de uma aparente normalidade. Ou seja: Haneke demonstra que algumas coisas se quebram, sem conserto.
Sendo assim, em Amor, acompanhamos uma trajetória terrivelmente honesta. Um retrato que pode parecer sórdido e pessimista, mas que é um simples fato da vida, algo próximo de muitos, e também o pesadelo de outros.
História tem como foco os idosos Georges e Anne, um casal que parece diferenciado, especial talvez (o fato de estarem unidos, mesmo com a idade avançada, já é um mérito a ser celebrado em nossa sociedade de relacionamentos descartáveis). Suas interações e diálogos são muito inteligentes, ambos demonstram autonomia e total controle de suas vidas. Ela, uma ex-professora de piano, possui vitórias pessoais, um pupilo que conquistou fama internacional... e por este caminho segue a construção dos personagens.
Mas em uma noite como outra qualquer, surge então aquela fração de segundos em que tudo muda. Anne se torna, dolorosamente, uma vítima de sua idade, que lhe ataca com um provável derrame (o roteiro opta por não esclarecer exatamente do que se trata a doença, apesar de certa obviedade). A saúde física e mental da mulher se deteriora de maneira acentuada, e seu marido, dono de uma personalidade no mínimo heroica, assume o cargo moral de ajudá-la da melhor forma que lhe for possível.
Como de costume, a obra de Haneke traz um ritmo lento, por vezes incômodo, que através de cenas rotineiras – até mesmo banais – alcança um realismo apurado, algo único de fato. Apesar de flertar com a subjetividade em alguns de seus filmes, em Amor o diretor escolhe, na maioria do tempo, ser franco e direto, ofertando uma análise visceral sobre nossa mortalidade e argumentando a falta de opções por uma morte digna em nossa sociedade. Ao mesmo tempo, com a relação do casal (que oferece tocantes momentos de ternura), a fita exalta a honestidade e respeito de um amor verdadeiro, e todo o companheirismo que lhe é inerente.
Mas o retrato fiel do amor é triste. A frieza do filme praticamente se agarra a audiência. Sem o acompanhamento de trilha sonora (exceto em poucas cenas em que a música está presente no ambiente), vislumbramos a verdade surgir silenciosa, facilmente exposta por olhar, gesto ou palavra arrastada. A entrega da dupla de atores protagonistas, Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, nos leva a questionar o impacto de tais interpretações em suas próprias vidas. É algo forte e impressionante.
Em resumo, Amor é um filme que deve ser visto. Mesmo expondo um caso específico, ele presta uma nobre função: a de discutir as possíveis circunstâncias de nosso inevitável envelhecimento. Após o arrasador desfecho, uma espécie de descarga emocional nos faz perceber a pequenez de nossos problemas cotidianos, e um estranho sentimento de liberdade encontra espaço. Recomendado.
PS: Michael Haneke ganhou com o Amor o Globo de Ouro 2013 na categoria de melhor filme em língua estrangeira, e concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro, melhor filme, melhor atriz, melhor diretor e melhor roteiro original.
Amor/ Amour: França, Alemanha, Austria/ 2012/ 127 min/ Direção: Michael Haneke/ Elenco: Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, Alexandre Tharaud, William Shimell
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