quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

ROGER WATERS – THE WALL (2015)

roger waters the wall cover (1)

Filme, documentário e show se confundem em obra que é espetáculo sobre a busca por um pai e uma reação contra o terrorismo
Por Lucas Scaliza
Roger Waters, o baixista, cantor e compositor do Pink Floyd, foi quem liderou a banda em 1979 na produção e turnê do álbum The Wall, a ópera rock mais famosa e mais influente de que se tem notícia. Se a banda antes era conhecida por sons psicodélicos, depois por sons viajantes, com este álbum o Pink Floyd se mostrou extremamente bem alinhado com seu tempo, mais uma vez propondo sonoridades diferentes dentre tudo o que já haviam feito e criando um trabalho conceitual em que tudo cabia: capitalismo, comunismo, Guerra Fria, crítica ao sistema educacional, ao casamento, à superproteção materna, ao showbusiness e um retrato de uma condição mental que só se deteriora frente às pressões do mundo.
The Wall, o álbum, nunca deixou de ser atual e de se conectar às novas gerações, mas o que Roger Waters conseguiu fazer ao levar o disco novamente para os palcos do mundo inteiro extrapolou qualquer expectativa. Embora a turnê tenha ocorrido entre 2010 e 2012, só agora temos acesso ao registro prometido pelo músico. O show está disponível em CD e em blu-ray, mas resenharemos a versão audiovisual por conta de suas várias nuances que agregam mais significado ao lançamento.
Roger Waters The Wall 1
É importante dizer que o filme The Wall, escrito e dirigido por Waters e por Sean Evans, é uma mistura de gêneros. É claro que a maior parte de suas 2 horas e 12 minutos são tomadas por um show em que o clássico álbum foi executado na íntegra em um campo de futebol em Paris. As performances são irrepreensíveis. Cada nota de solo de guitarra, cada dueto e cada uma das 29 faixas são tão únicas e emocionais quanto o eram em 1979. Mas o que realmente chama a atenção no filme são as intervenções narrativas que são tanto documentário quanto road movie.
Quem conhece o Floyd e alguns dos temas de The Wall sabe que o pai de Waters lutou na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas e foi morto quando Roger ainda era muito pequeno. Assistindo ao filme, sabemos também que o avô de Waters lutou na Primeira Guerra Mundial e também foi morto em combate, quando seu pai tinha apenas dois anos. Pois bem: o filme começa justamente com o músico chegando a um cemitério/memorial para homenagear quem perdeu a vida na truculenta máquina de moer carne da Segunda Guerra. Enquanto ele toca uma música melancólica em seu trompete para as lápides, um avião sobrevoa o local e um corte sensacional nos leva do documentário para a inesquecível introdução do show com “In The Flesh?”.
Entre uma sequência e outra de músicas, o show é interrompido para mostrar a peregrinação de Waters pela Europa continental em busca de seu pai, da memória de seu pai. Ele morreu em combate na cidade de Anzio, na Itália, e é para lá que ele vai, de carro. Ao longo do caminho, encontra várias pessoas diferentes: filhos, netos, amigos, desconhecidos. É tanto um road moviequando um “falso” documentário, que copia algumas ideias de 20,000 Days On Earth (2014), o documentário de Nick Cave. Assim como ocorreu com o músico australiano, Waters também conversa com alguns personagens dentro de um carro em movimento. Em um momento estão lá, no outro não estão mais. E Waters dirige pela França e para dentro da Itália sempre vestido de preto, um luto sem fim, com direito a uma parada em um bar para três doses enquanto desabafa em inglês para um barman que só entende francês. Uma cena tão literária quanto cinematográfica. Todo o arco narrativo que tem a ver com o pai é comovente e ajuda a dar ainda mais gravidade à obra. Além de um espetáculo, conhecemos um pouquinho mais a história pessoal do compositor.
Já o show teve mensagens políticas ácidas e importantes ao longo de toda a sua extensão. Roger Waters atualizou todo o conceito citando as mazelas humanas atuais. Um dos alvos é o terrorismo. O telão circular no centro do palco exibe fotos de pessoas vítimas de atentados terroristas ao longo de algumas músicas. São pessoas de diversas nacionalidades e que foram mortas em diferentes lugares do globo. A clássica “Another Brick In The Wall Part 2” ganha inclusive uma pequena continuação dedicada ao brasileiro Jean Charles de Menezes, morto em 2005 ao ser confundido com um terrorista pela Scotland Yard no metrô de Londres.
Em “Goodbye Blue Sky”, o telão exibe vários aviões que despejam as ideologias sobre o mundo e que acabam se tornando símbolo de sofrimentos, injustiças e sofrimentos. Cruzes cristãs, estrelas judaicas, luas islâmicas, cifrões capitalistas, símbolo do Comunismo e até mesmo os logotipos das empresas Shell e Mercedes. Em “Mother”, um dos versos pergunta: “Mãe, eu deveria confiar no governo?” e uma animação no paredão responde em russo e em inglês “De jeito nenhum”, endereçando uma mensagem diretamente a Vladmir Putin, Barack Obama e David Cameron, atual primeiro ministro inglês.
Agora vamos falar do show. A produção de palco é impecável. Conforme a apresentação avança, uma enorme parede vai sendo construída até cobrir totalmente a banda. Por cima dessa parede é apresentada animações e imagens de encher os olhos que ajudam na narrativa atualizada de The Wall. Esse palco foi projetado pelo mesmo engenheiro que construiu o inovador palco 360º doU2. A música é a força motriz do espetáculo, mas não teria a mesma gravidade se não fossem todas as animações e vídeos projetadas para deslumbrar ainda mais o público. Water e os outros músicos chegam mesmo a ficar pequenos diante de tamanha engenhosidade visual.
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A sequência “Another Brick In The Wall Part 1”, “The Happiest Days of Our Lives” e “Another Brick In The Wall Part 2” constituem um dos momentos mais tensos do show. Water inicia “Mother” tocando violão junto com uma gravação sua ao vivo no Earls Court de 1980. “Hey You” é tão tocando quanto sempre foi e embora seja muito fiel à original, ganhou acréscimos sonoros muito bons com as novas versões de teclados e pedais disponíveis atualmente. A tristíssima “Nobody Home” mostra um muro já completo e quase intransponível, mas Waters a canta a partir de um buraco no muro, como se estivesse sozinho e isolado em uma sala de apartamento.
Diversas músicas têm vocais divididos entre Roger e Robbie Wyckoff, explorando muito bem a original divisão vocal entre Waters e David Gilmour no disco de 1979. Mas Waters encarou sozinho a tarefa de cantar “The Trial”, faixa em que precisa interpretar diversos personagens diferentes (o professor, a mãe, a esposa, etc) já no fim da apresentação. Mas é claro que o ponto alto do filme é “Comfortably Numb”. A banda está toda escondida pela parede. Apenas Waters canta no que sobrou do palco à frente dela. De repente, o topo do muro se ilumina e vemos Wyckoff lá em cima cantando o refrão. Do mesmo modo, na hora do solo, outro ponto no topo do paredão se acende e vemos Dave Kilminster fazer os solos da música empunhando uma Fender Telecaster. É o momento mais emocional do show e que compreensivelmente mais mostra cenas do público. Difícil não se arrepiar com a imagem de Wyckoff e Kilminster no topo da parede.
Lançado na semana passada, The Wall de Roger Waters é um símbolo de seu tempo hoje muito mais do que quando a turnê percorreu o mundo. Embora já existisse conflitos e atentados terroristas por todos os cantos, todas as letras, mensagens políticas e narrativas do filme são sentidas com muito mais força após os atentados de Paris. Seja por seu ativismo, seja pelo espetáculo visual que consegue superar o do U2, este é talvez um filme/documentário/show de música completo. Não apenas resgata um clássico do rock progressivo como também o atualiza. Waters nunca para no tempo.
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