Coloque-se na sua pele! Algumas notas para quem viu o último Almodóvar
por Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira
(Profa. de Literatura Portuguesa da UFF)
A primeira imagem é a do dorso desnudo da mulher que fascina o vingador. Ali está um corpo transformado pela arte de um cirurgião plástico, interpretado por Antônio Bandeiras, no último filme de Almodóvar, A pele que habito. Aos poucos, por meio de flashbacks, o espectador reconhece o estilo inconfundível desse Diretor espanhol que sabe tratar com profundidade questões de amor e morte, sexualidade e poder. Aqui se observa um feroz e oblíquo libelo contra a intolerância frente a opções não-heterossexuais; oblíquo, porque não se dá a ver de modo direto e sim de forma especular como na tópica carnavalesca do mundo às avessas; feroz, porque, à sua revelia, este corpo foi alterado com uma violência que o espectador custa a reconhecer. Pelo rompimento da linearidade narrativa, voltamos ao passado recente para saber que, por acaso, o dono do corpo esteve a ponto de estuprar a filha do médico, tornando-se por isso a vítima do psicopático pai que o caça na estrada e o mantém preso como um animal na masmorra de sua luxuosa clínica onde realiza afamadas, ousadas e controvertidas experiências científicas.
A ferocidade paterna é compreensível embora o estupro não se tenha concretizado em vista da reação histérica da moça que, àquela altura, estava sob forte tratamento psiquiátrico. Por sua vez o presumido estuprador havia ingerido alguma droga, mas não o suficiente para perder a cabeça, o que lhe permite afastar-se da cena com prudência depois de rearranjar delicadamente as roupas da moça. Torna-se claro que sua opção heterossexual não está em causa, pois gosta de mulheres, trabalha para elas e com elas – sua mãe e uma funcionária lésbica(?) – divide uma loja de roupas femininas. No entanto o zeloso pai da donzela interpreta mal alguns sinais deixados pela moça no caminho – um casaco caído, uns sapatos abandonados – e acaba por encontrá-la desacordada no bosque, ao pé da árvore, mas inteiramente composta. Ao dobrar-se sobre a filha, que abre os olhos, acontece nova cena histérica, agora contra o pai que a menina supõe ser o estuprador, o que agrava fatalmente o seu estado psíquico daí em diante.
Que melhor desforra do que submeter o violentador ao mesmo tipo de violência experimentada pela sua filha? Desse modo o Dr. Ledgard prepara lentamente o prato frio da vingança na pele do jovem sequestrado. Graças a procedimentos cirúrgicos bem sucedidos, eticamente contestados pelos colegas médicos, a vítima toma a forma de uma linda e doce criatura dotada de todos os atributos femininos, em especial uma vagina artificial cuja destinação é clara: o vingador prepara o canal para a vingança. No entanto, a criatura acaba por ganhar a admiração e a confiança do seu criador (o velho tema de Pigmaleão), fazendo-nos esquecer sob aquela pele “feminina” habita um homem que sofre. Este é um esquecimento provocado pela genialidade de Almodóvar que traz à tona uma pequena verdade invisível: a violência de se ter um corpo em desacordo com a alma. Para escapar da opressão, Vicente / Vera (dupla onomástica do personagem) disfarça o seu dissabor e seduz o carrasco. Depois de muitas peripécias para se libertar, busca nas duas mulheres o refúgio e o apoio de que precisará daí para frente.
No jogo especular de gêneros que cruza sexualidades, a obra convoca um espectador ideal, espécie de “leitor ideal”na terminologia de Humberto Eco: o macho heterossexual incapaz de compreender a irreversível situação de se possuir uma alma feminina num corpo grosso e peludo, tal como a que vive o próprio Diretor, homossexual assumido. Vivendo de forma inversa a mesma dissonância – uma alma masculina num corpo feminino – , Vicente é o personagem com o qual o espectador homofóbico é chamado a se identificar, a se comover e, quem sabe?, entender e reverter o preconceito por meio da experiência de se colocar na sua pele.
Em suma, o filme é um libelo contra dois tipos de violência: a que é praticada pelos médicos prepotentes, donos dos corpos, na suposição de que sabem o que é melhor para os pacientes; e a que é dirigida por este mesmo tipo de gente contra homossexuais cujos corpos são vistos como imperfeitos por não combinarem com suas almas. De tudo isso deduz-se a postulação da soberania do desejo como forma de ultrapassar os violentos desacordos entre corpo X espírito ou pele X identidade sexual.
Recado dado, recado entendido. Na pele que (bem) habita, caberia ao Diretor levantar alguma estatueta de Melhor Filme da temporada. Simplesmente genial!
por Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira
(Profa. de Literatura Portuguesa da UFF)
A primeira imagem é a do dorso desnudo da mulher que fascina o vingador. Ali está um corpo transformado pela arte de um cirurgião plástico, interpretado por Antônio Bandeiras, no último filme de Almodóvar, A pele que habito. Aos poucos, por meio de flashbacks, o espectador reconhece o estilo inconfundível desse Diretor espanhol que sabe tratar com profundidade questões de amor e morte, sexualidade e poder. Aqui se observa um feroz e oblíquo libelo contra a intolerância frente a opções não-heterossexuais; oblíquo, porque não se dá a ver de modo direto e sim de forma especular como na tópica carnavalesca do mundo às avessas; feroz, porque, à sua revelia, este corpo foi alterado com uma violência que o espectador custa a reconhecer. Pelo rompimento da linearidade narrativa, voltamos ao passado recente para saber que, por acaso, o dono do corpo esteve a ponto de estuprar a filha do médico, tornando-se por isso a vítima do psicopático pai que o caça na estrada e o mantém preso como um animal na masmorra de sua luxuosa clínica onde realiza afamadas, ousadas e controvertidas experiências científicas.
Que melhor desforra do que submeter o violentador ao mesmo tipo de violência experimentada pela sua filha? Desse modo o Dr. Ledgard prepara lentamente o prato frio da vingança na pele do jovem sequestrado. Graças a procedimentos cirúrgicos bem sucedidos, eticamente contestados pelos colegas médicos, a vítima toma a forma de uma linda e doce criatura dotada de todos os atributos femininos, em especial uma vagina artificial cuja destinação é clara: o vingador prepara o canal para a vingança. No entanto, a criatura acaba por ganhar a admiração e a confiança do seu criador (o velho tema de Pigmaleão), fazendo-nos esquecer sob aquela pele “feminina” habita um homem que sofre. Este é um esquecimento provocado pela genialidade de Almodóvar que traz à tona uma pequena verdade invisível: a violência de se ter um corpo em desacordo com a alma. Para escapar da opressão, Vicente / Vera (dupla onomástica do personagem) disfarça o seu dissabor e seduz o carrasco. Depois de muitas peripécias para se libertar, busca nas duas mulheres o refúgio e o apoio de que precisará daí para frente.
No jogo especular de gêneros que cruza sexualidades, a obra convoca um espectador ideal, espécie de “leitor ideal”na terminologia de Humberto Eco: o macho heterossexual incapaz de compreender a irreversível situação de se possuir uma alma feminina num corpo grosso e peludo, tal como a que vive o próprio Diretor, homossexual assumido. Vivendo de forma inversa a mesma dissonância – uma alma masculina num corpo feminino – , Vicente é o personagem com o qual o espectador homofóbico é chamado a se identificar, a se comover e, quem sabe?, entender e reverter o preconceito por meio da experiência de se colocar na sua pele.
Em suma, o filme é um libelo contra dois tipos de violência: a que é praticada pelos médicos prepotentes, donos dos corpos, na suposição de que sabem o que é melhor para os pacientes; e a que é dirigida por este mesmo tipo de gente contra homossexuais cujos corpos são vistos como imperfeitos por não combinarem com suas almas. De tudo isso deduz-se a postulação da soberania do desejo como forma de ultrapassar os violentos desacordos entre corpo X espírito ou pele X identidade sexual.
Recado dado, recado entendido. Na pele que (bem) habita, caberia ao Diretor levantar alguma estatueta de Melhor Filme da temporada. Simplesmente genial!
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