Eu cresci com livros nas mãos. Filas de banco, nas visitas solitárias ao cinema, enquanto o filme teimava em não começar, ou em lojas de roupa, quando minha mãe tinha a necessidade inerente de vasculhar cada prateleira bagunçada e tediosa de vestidos e saias. Em todas essas ocasiões, eu estava com o nariz enfiado nas páginas de um livro. Pessoas suadas e irritadas à espera de um caixa que contava moedas lentamente? Namorados empolgados demais antes do filme começar? Horas e horas perdidas numa cadeira desconfortável de loja de roupas? Eu não me importava – bem, ao menos não muito. O que acontecia ao meu redor pouco importava, na verdade. Eram as palavras que tinham a minha atenção, o meu interesse, e apenas elas existiam naqueles momentos. Um leitor, afinal, nunca fica entediado. Na minha mente, esse era o normal, era assim que as pessoas lidavam com as horas vazias de seus dias, evitando o tédio mortal ou que a cabeça ficasse demasiadamente preguiçosa.
Só depois eu descobri que era um leitor ávido. Compulsivo. Havia dicas, aqui e ali, mas eu não me atentava para elas. (Se você precisa correr para o banheiro e não consegue agarrar um livro e acaba lendo os rótulos de xampu ou a caixa de cotonetes, bem-vindo ao clube.) Foi na escola que percebi o quanto gostava de ler. Primeiro, foi uma professora de Português que, ao invés de fazer seu maldito papel, disse que eu tentava apenas me fazer passar por intelectual, andando para cima e para baixo com livros como O Senhor dos Anéis, que, para uma criança de dez anos – e, importante notar, muito tempo antes dos filmes e da popularidade absurda que a trilogia hoje tem – carregar, realmente levanta suspeitas. Depois, foi um valentão irritado comigo na saída da escola. “Como alguém consegue ler por tanto tempo”, perguntava-se indignado, aparentemente enquanto decidia se me mandava para casa com o nariz sangrando ou com o olho roxo. Por sorte, eu não escutei minha professora paradoxal, e não fui para casa com o nariz sangrando e com uma mentira pronta para meus pais. Eu li, independente dos comentários – positivos e negativos – das pessoas ao redor. Eu li. Nos bancos, nas lojas de roupas femininas e antes dos filmes começarem. Eu li.
E o nome constante nas capas de meus livros era – em fonte maior do que o próprio título do romance – Stephen King. Sempre que conseguia colocar minhas mãos de unhas roídas em um dos livros do autor, eu me trancava em casa e não saía do quarto, devorando páginas depois de páginas por horas seguidas, até que tudo estivesse dito e feito. O Iluminado, Desespero, A Coisa, Insônia… Os livros se acumulavam e os dias corriam sem que eu notasse o mundo real. Vivi grande parte de minha adolescência com o vento gelado do Maine batendo em meu rosto, o frio agudo e as cidades pequenas onde todos se conheciam e normalmente se intrometiam na vida dos outros. Era um mundo imaginário, ainda que palpável por causa da descrição primorosa e dos personagens que pareciam respirar perto do meu rosto. O mestre do horror teve grande influência em meu gosto por livros, filmes e até mesmo pela música. Por isso, Revival pode ter um significado muito maior para mim do que para você.
Veja bem, Stephen King pode ser um tipo poderoso de droga. Você sabe que não é a melhor das decisões, mas vai em frente e experimenta a viagem. Depois, você tenta de novo. E de novo. E quando se dá conta, seus braços estão coçando e você começa a rodar as livrarias da cidade para encontrar outro livro dele para ler. Às vezes, tarde da noite.
Mas há fases diferentes nos livros do mestre do horror, como em qualquer outro escritor prolífico o suficiente. Revival, o livro mais recente do escritor norte-americano – com lançamento programado no país para este ano pela Suma de Letras – é sobre sua primeira fase, quando os livros pagavam contas mais urgentes e ele escrevia envolto em dunas de cocaína e álcool.
O romance é sobre religião, rock, drogas e energia. Não exatamente nessa ordem. O livro orbita a vida de Jamie Morton, filho mais novo de uma grande família que brincava com seus soldados de plástico, quando Charles Jacob faz uma visita em sua casa. É o começo de uma amizade que toca profundamente a criança, e Jacob começa a ensinar um pouco do que sabe sobre eletricidade: um mistério para a comunidade minúscula e parcialmente rural. Charles faz alguns truques elétricos para chamar a atenção dos adolescentes, que debandavam da igreja como jovens fazem, um papel que lhes é esperado, e o pequeno Jamie logo está fascinado com as possibilidades que uma corrente elétrica traz. Como, por exemplo, amplificadores de som. Depois de um terrível acidente de trânsito, Jacob some da vida de Jamie, e o garoto, com o passar do tempo, se apaixona pela guitarra de um de seus irmãos mais velhos. A energia volta ao romance quando Jaime Morton sobe ao palco pela primeira vez e a estática das caixas de som chega aos ouvidos de todos.
O livro foca Charles Jacob como um homem que perdeu a fé em Deus e a substituiu pelo amor à eletricidade; Jaime Morton luta com seus próprios demônios em pó, injetáveis ou líquidos, enquanto deixa escapar pelas mãos a chance que tinha para ser um excelente músico numa banda de rock. Revival é sobre segundas chances, sobre fé, música e sobre um tempo que já se passou e agora vive na memória dos que hoje são velhos o suficiente para pensar nas décadas passadas com nostalgia.
Mas há dois pontos que gostaria de focar: abordar todos os pilares que fazem com que o livro se destaque seria cansativo para nós dois, meu caro leitor.
Primeiro, recomendo outras leituras de Stephen King antes de Revival. Muita coisa fica perdida se o leitor não abrir o livro com prévia base do autor e de suas influências. A cena final do livro seria um absurdo sem qualquer sentido para o leitor que desconhece o horror clássico de King, Edgard Allan Poe e H. P Lovecraft, por exemplo. As homenagens a Mary Shelley, aos demônios de absoluto horror de Lovecraft e aos livros de início de carreira do próprio King passariam despercebidas. Nas Montanhas da Loucura, do criador de Cthulhu, é uma leitura essencial para o leitor que gostaria de capturar a essência das últimas dezenas de páginas. Do contrário, a experiência ficaria incompleta, frustrante como uma fila de banco sem um livro nas mãos. Ou alguma loja de roupas, se você preferir.
Por fim, o próprio título indica que o escritor gostaria de revisitar suas origens, as raízes literárias que lhe compraram um lugar quase contínuo na lista dos best-sellers. Revival é, em muitos aspectos, um produto das décadas de 1970-80, e há naturalidade na nostalgia: Morton cresce, passando de uma criança para um velho guitarrista, fora de forma e deslocado, quando pensa na cultura que se desenvolve ao seu redor, mas que lhe é alienígena, exótica. O terror é mais latente nas páginas deste livro do que, digamos, em Doutor Sono ou em Mr. Mercedes, os últimos lançamentos. Conforme King envelhece, também envelhecem suas personagens, e Jaime Morton se torna muito mais interessante e real quando está com 50 anos. Ele realmente se estrutura de forma complexa e com cores vivas, refletindo o anacronismo do próprio escritor. O clímax não ocorre quando Morton é um adolescente ou jovem adulto em pleno vapor, mas quando ele já sente a respiração pesada, e os joelhos começando a falhar; quando um x-burger já não cai assim tão bem no estômago, e o futuro está no passado. Mas os elementos mais antigos também estão presentes: o vilão que beira o caricato; a bela moça sem pudores que serve como o escape sexual que separa os meninos dos homens; e o quase culto à cerveja com doses de cocaína e heroína, que casam muito bem com a carreira musical de Jaime Morton. A eletricidade também forma um elemento de interesse, e o leitor fica nas bordas do livro, imaginando quando a merda finalmente baterá no ventilador e a eletricidade entrará na equação como elemento de vital importância; o “x” que todos nós procuramos.
E é neste ponto que a obra não consegue se manter. Enquanto minhas preocupações em resenhas passadas se davam com o passo lento das histórias e passagens que se esticavam demais, sem foco, sem propósito, King, aqui, poderia ter se prolongado um pouco mais. A história de Jaime Morton demora para colocar todas as peças no tabuleiro, mudando o leitor no tempo e no espaço e tomando seu devido tempo para construir o cenário, até que possamos sentir os cheiros dos lugares saindo pelas páginas. A perda da fé está presente, assim como a revolução na qualidade de vida que a eletricidade proporciona; o abuso de drogas e as segundas chances também aparecem nesta ou naquela página. Porém, há a sensação de que não olhamos diretamente nos olhos do dragão, não nesta obra. Podemos senti-lo, quase visualizar onde o escritor queria chegar, mas o livro falha ao deixar de agarrar seus demônios pela garganta e esfregá-los na cara do leitor.
O romance se propôs a recuperar o terror que desapareceu – diluiu-se, para ser mais preciso – nas publicações do autor, principalmente depois de seu grave acidente em 1999. A impressão é de que a obra quer ter a energia dos 20 anos enquanto bombeia sangue em veias de 60: breve demais, seria muito melhor se tivesse a paciência e preparo, para se esticarem um pouco mais as pernas e percorrer aquele quilômetro extra. É na nostalgia que o livro me conquistou, no olhar que reserva para os monstros que aguardavam debaixo da cama. Para alguém que cresceu com livros na mão e o nariz enterrado em páginas amareladas pelo tempo, Revival atinge o ponto que te faz lê-lo com carinho.
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Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube.
Leia Mais: http://www.vortexcultural.com.br/literatura/resenha-revival-stephen-king/#ixzz3maWBTZXT
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