O maior monstro do mundo
John Merrick é o “ganha pão” de um homem de circo por ser vítima de uma anomalia rara: neurofibromatose múltipla – a doença congênita que causa crescimento anormal do sistema nervoso
A resenha do filme O Homem Elefante foi publicada por Mayra Matuck Sarak, editora do site Uma Tela Indiscreta.
Um dia, o Dr. Frederick Treves (Anthony Hopkins) conhece John e resolve estudá-lo:
– “Obrigado. Boa tarde. Sr. Thomas, Sr. Rogers… Pode abrir as cortinas. É inglês e tem 21 anos. Seu nome é John Merrick. Senhores, no decorrer da minha vida profissional… encontrei as mais lamentáveis deformidades… causadas por acidentes ou doenças, e contorções do corpo de várias naturezas. Mas nunca encontrei versão mais degradante do ser humano. Chamo-lhes a atenção para o carácter insidioso da condição do paciente. Dá pra ver lá?”. – Ele estava apresentando John numa palestra para médicos.
– “Sim”. – Respondem os outros.
– “Notem a hipertrofia craniana. O membro superior direito, totalmente inutilizado. A curvatura alarmante da espinha. Quer virar, por favor? A frouxidão da pele e os fibromas que cobrem quase todo o corpo. E tudo indica que esse padecimento sempre existiu… e vem progredindo de modo acelerado desde o nascimento. O paciente também sofre de bronquite crônica. Um detalhe interessante. Apesar das mencionadas anomalias. Os órgãos genitais do paciente não foram afetados. O seu braço esquerdo é perfeito como podem ver. Devido à sua condição… papilomas como grandes massas penduradas na pele… a hipertrofia do membro superior direito e todos os seus ossos… a acentuada deformidade da cabeça… o paciente foi apelidado de Homem Elefante. Obrigado”.
(palmas)
The Elephant Man foi o primeiro filme reconhecido do diretor David Lynch, lançado em 1980 com oito indicações ao Oscar no ano seguinte. Em preto-e-branco é baseado numa história real de um órfão “ganha-pão” de Mr. Bytes (Freddie Jones). Baseado em uma história real, o roteiro conta a vida de Joseph Merrick, nascido em Leicester, Inglaterra em 1862. Joseph tinha dois anos quando sua mãe notou que o filho tinha algo estranho. O moço deixou a casa cedo e foi vendedor de rua, operário, mas só conseguiu ser reconhecido como um freak-show (espetáculo de aberrações). Serviu como “ganha-pão” de um homem que o apresentava num circo, e vivia em numa espécie de cativeiro e apanhava de seu “assessor de imprensa”. Ao ser encontrado pelo Dr. Treves, futuro médico da Família Real Britânica, é levado para morar num hospital e ter uma qualidade de vida melhor. Ser estudado. Nasce aí um vínculo de amizade entre os dois.
– “Num hospital não pode haver segredos. Um médico não acolhe um encapuçado sem suscitar comentários. Porque esse paciente não foi admitido formalmente? Porque está no isolamento?” Ele não é contagioso, é? – pergunta o diretor do hospital para o Dr. Treves.
– “Não senhor; ele tem bronquite e foi muito surrado”.
– “Porque então ele não está na enfermaria?”
– “Achei que os outros pacientes se chocariam”.
– “Então é isso? Devo concluir que ele é incurável?”
– “Sim, senhor.”
– “O senhor sabe que não aceitamos pacientes incuráveis. É a regra aqui”.
– “Eu sei disso senhor, mas este caso é excepcional”.
A criatura horrível até certo ponto diagnosticada como doente mental por não saber se expressar torna-se alguém amável, digna de atenção e carinho. Mesmo que em nenhum momento permaneça livre do monstruoso preconceito que o cercava.
Na maioria dos filmes, o personagem principal sempre se transforma. Em outros, aquele homem “durão” que nos conduziu até o final da trama permanece intactamente igual, deixa que sua mensagem fatal ou não disperse ou então sobressaia-se no meio do imenso cenário produzido. Mas em O Homem Elefante, o personagem principal se revela. É nessa revelação que ocorre uma aproximação do espectador com sua própria noção de realidade; tão sombria quanto à feiúra de John. Tão escandalosa e apelativa quanto ele.
Uma condução crítica de vida, de valores, de ética, de solidariedade, de sociedade… são colocadas através do apelo “surreal” dessa história. “O mundo tem que ser representado para ser reconhecido”: uma reflexão sobre invisibilidade social e humana, longe de ser invisível. Deveríamos, em certa medida, nos incluir nisso.
*Bibliografia
LYNCH, David. O Homem Elefante. 1980. Obs: as aspas dos diálogos usados na resenha foram retiradas do próprio filme.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinemas. 2. ed. Campinas – São Paulo: Papirus, 2002. p. 58 e 59.
Observações:
O “personagem” real morreu de asfixia em 1890, quando foi deitar para dormir, o peso da cabeça esmagou a traquéia. Seu corpo está conservado no Hospital Real Londres – a quem interessar possa.Anamorfose
A produção de alucinações teve início no século XVII, com o conceito de Anamorfose; um instrumento gerador de alucinações cujas técnicas constituem em um deslocamento do ponto de vista a partir do qual a imagem é visualizada, sem eliminar a posição anterior, decorrendo num desarranjo de perspectivas originais com a idéia de distorcer o padrão “realista” (renascentista) da técnica. Mas abrangeu uma poética da abstração, um efetivo mecanismo de ilusão de ótica, e até mesmo “uma filosofia da falsificação da realidade”. (Baltrusaitis 1977, p.1).Vale reparar que Lynch fez uso da técnica no filme O Homem Elefante.
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