por Ronaldo D'Arcadia
Em Ferrugem e Osso, o diretor francês Jacques Audiard faz do improvável sua ferramenta de construção
É interessante perceber que dois sucessos recentes do cinema francês, a comédia dramática Intocáveis, e o romance dramático Ferrugem e Osso, trazem como conceitos de suas histórias dois personagens extremamente parecidos: o ignorante desprovido que é sábio a sua maneira, e o cidadão bem sucedido de classe alta que é infeliz e debilitado.
É certo dizer que este é um tema de apelo fortíssimo, que gera uma reflexão positiva sobre nossa condição humana e a forma egoísta com que avaliamos nossos problemas a todo o momento.
Dirigido e roteirizado por Jacques Audiard (que tem no currículo os excelentes O Profeta e De Tanto Bater Meu Coração Parou), Ferrugem e Osso conta a história de Stéphanie (Marion Cotillard) e Alain (Matthias Schoenaerts). Ela é uma domadora de baleias Orca (creio que este seja um dos raros filmes que trazem uma protagonista com esta profissão) e ele é um zé ninguém, que faz dos punhos e da força bruta seu ganha pão. O sujeito tem um filho, com o qual passa maus bocados antes de ir morar com a irmã.
Após um acidente no parque aquático em que trabalhava, Stéphanie perde suas duas pernas. Arrasada pelo acontecido, ela busca consolo numa improvável amizade com Alain. Em meio ao sexo casual e mudanças completas de paradigmas, surge um forte sentimento que mistura amor e proteção mútua.
O grande mérito de Ferrugem e Osso é o choque de realidades. Stéphanie, antes de ter sua vida virada do avesso, parecia fútil e infeliz nos relacionamentos que mantinha. No entanto, devido a sua classe social, tudo acabava disfarçado por uma imagem exterior de superioridade pré-fabricada. Ele por sua vez é um homem sem formação, educação ou compreensão de como se relacionar de maneira funcional com pessoas próximas, sendo Stéphanie a única que consegue criar um diferenciado laço com ele.
O roteiro é corajoso e inventivo. A improbabilidade de situações são atenuadas eficientemente pela direção de Audiard. O francês não se prende a estilos na hora de capturar suas cenas, e se reinventa a cada momento, por meio de uma ótima edição, montagem, o uso da steadycam, belíssimos closes, e a utilização coerente do slow motion, em particular nas sequências de lutas, evidenciando detalhes e tornando tudo muito mais atrativo.
Por diversos momentos, influenciado pela debilidade física de sua personagem principal, o diretor emoldura, em tórridas cenas de sexo, uma beleza disforme e memorável (lembrando que os efeitos especiais que removem a perna de Cotilard são surpreendentes).
Outro quesito da produção que merece aplausos é a opção honesta de não enfeitar a aparência da realidade, oferecendo personagens críveis em todos os sentidos, tanto em estado mental como físico. Marion Cotilard, que é dona de uma beleza incomparável, exemplifica bem esta escolha quando surge, durante quase todo o filme, com vestimentas mal-ajambradas, cabelos desgrenhados e provavelmente imundos. O ator Matthias Schoenaerts também passa longe do rótulo de galã quando exibe seu porte bombado, meio barrigudo... ou seja, algo normal, realista.
Apoiados por estes fatores, os atores oferecem pura espontaneidade para seus papéis. Cotilard é destaque absoluto ao explorar com honestidade as diferentes camadas de sua Stéphanie.
Em resumo, Ferrugem e Osso é um filme incrível. Nada pode preparar a audiência para os acontecimentos da trama, que são de fato surpreendentes. O longa aproxima de maneira única o bizarro do natural, misturando universos distintos, os testando com realidades improváveis. Recomendado.
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